Edição 248 05 de maio de 2009
O De Olho na Mídia desta semana traz aos leitores do Olhar Virtual um artigo escrito por Cristovão Fernandes Duarte, professor do Programa de Pós-Graduação em Urbanismo e da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ, no qual aborda a intensa crítica dos meios de comunicação às calçadas de pedra portuguesa no Rio de Janeiro. O argumento mais comum feito por aqueles que preferem a retirada das pedras portuguesas das calçadas, na opinião do professor, é que a “falta de manutenção dos calçamentos acarreta o aparecimento de buracos e pedras soltas, submetendo as pessoas a todo tipo de constrangimentos e riscos”.
Entretanto, Duarte mostra em seu artigo que não se pode condenar esse tipo de revestimento, usado há milhares de anos. Para o pesquisador, o problema está na “falta de gestão pública do espaço urbano”.
Confira a seguir o artigo na íntegra.
Pela absolvição da pedra portuguesa nas nossas cidades
Cristovão Fernandes Duarte*
“Ao longo das últimas semanas, a imprensa carioca vem veiculando um massivo e impiedoso ataque às calçadas de pedra portuguesa. Não se trata de nenhuma novidade. Volta e meia reaparecem os detratores desta eficiente e, por isso mesmo, longeva forma de revestimento de pisos e calçadas. Nos anos 90, durante as intervenções urbanísticas do Programa Rio-Cidade da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, assistimos à execração pública das calçadas em pedra portuguesa da Av. N. S. de Copacabana, que acabaram substituídas por superfícies cimentadas. Curiosamente, no mesmo momento em que as pedras portuguesas eram banidas de alguns bairros da nossa cidade o Projeto Rio-Cidade da Ilha do Governador construía cerca de 16 mil metros quadrados de novas calçadas em pedra portuguesa. Quer dizer, a mesma prefeitura que condenava a pedra portuguesa em alguns bairros (mesmo sob protestos de parte da população) aprovava a sua utilização em outras áreas da cidade, demonstrando não haver um consenso estabelecido sobre a questão.
Os argumentos daqueles que querem ver banidas as pedras portuguesas não mudam nem se renovam. A tônica é sempre a mesma: a falta de manutenção dos calçamentos acarreta o aparecimento de buracos e pedras soltas, submetendo as pessoas a todo tipo de constrangimentos e riscos. A rusticidade das conclusões chega a ser comovente: as pedras estão fora de lugar? As calçadas estão esburacadas?... Pronto, o veredito está dado! A solução será a remoção integral das pedras e sua substituição por outro tipo de revestimento (tudo isso nos fazendo lembrar um antigo prefeito desta cidade que, para evitar que as marquises desabassem sobre a cabeça dos transeuntes, resolveu proibir a construção de marquises por toda a cidade...).
Claro está que o problema não se refere à escolha do tipo de revestimento, mas à falta de gestão pública do espaço urbano, que não tem se mostrado capaz de assegurar o cumprimento da boa técnica de execução dos mosaicos em pedra portuguesa, nem a manutenção adequada das calçadas. Há milhares de anos (reparem: eu disse ‘milhares de anos’!) os mosaicos feitos com pedras calcárias multicoloridas são utilizados como revestimentos artísticos de paredes, colunas e pisos em todos os cantos do mundo. Trata-se, portanto e na melhor das hipóteses, de um julgamento apressado condenar esse tipo de revestimento, cuja recorrência ao longo da história das cidades se revela de modo sistemático e persistente. Escavações arqueológicas comprovam a existência desse tipo de revestimento nas cidades da Mesopotâmia, no antigo Egito e nas cidades da antiguidade greco-romana. Entre os exemplos mais conhecidos, pode-se destacar a cidade de Pompeia onde nem a devastadora erupção do Vesúvio (no ano 79 d.C.) foi capaz de apagar a solidez e a durabilidade dos painéis e pisos realizados segundo aquela técnica. Tal herança, de resto utilizada em várias cidades do mundo, seria reavivada em Lisboa no século XIX, consagrando-se, a partir de então, como técnica preferencial para o revestimento de pisos de praças e áreas públicas nas cidades portuguesas, tanto na Metrópole como nas colônias do Império Ultramarino português.
As principais vantagens do revestimento em mosaico de pedra decorrem do seu sistema construtivo que, por analogia, pode ser aproximado a um jogo de “quebra-cabeça”. Enumeraremos a seguir algumas dessas vantagens (às vezes pouco lembradas ou desconhecidas por seus detratores):
1) o mosaico resulta da justaposição de pequenas pedras (como as peças do “quebra-cabeça”) que se tocam nos seus bordos. Essa característica confere grande flexibilidade e maleabilidade ao calçamento, permitindo, pedra após pedra, acompanhar as eventuais ondulações do terreno, como também se ajustar com perfeição às mais complexas e inesperadas formas geométricas das superfícies a revestir;
2) uma vez completado o mosaico torna-se extremamente difícil retirar qualquer uma das pedras que o compõem. O atrito resultante do contato dos bordos das pedras entre si assegura um elevado grau de estabilidade ao calçamento (por esse motivo dificilmente encontramos partes faltantes na extensa área da Praça do Rossio em Lisboa, toda revestida de mosaico calcário). Tal característica física do sistema construtivo dispensa o uso de rejuntamento das pedras com argamassa de cimento ou qualquer outro tipo de aglomerante (alguns manuais técnicos admitem a utilização de uma farofa seca de saibro e cimento no preenchimento das juntas). Para assegurar a fixação das pedras basta apenas que elas estejam encaixadas umas às outras, de modo que os bordos se toquem pelo maior número de pontos possível (não obstante a forma irregular das pedras), estreitando-se, assim, as juntas entre as pedras. A montagem paciente e cuidadosa desse “quebra-cabeça” é, aliás, o mister da arte da calceteria (arte essa cada vez mais rara em nossa cidade, como demonstra a largura excessiva das juntas entre as pedras do calçamento que se tenta inutilmente compensar com a utilização de argamassa de cimento);
3) as pedras são (ou deveriam ser) assentadas sobre uma camada de areia que, por sua vez, se assenta sobre um solo compactado e convenientemente preparado para drenar as águas superficiais. Disso resulta outra grande vantagem da pedra portuguesa, sobretudo numa cidade como o Rio de Janeiro (sujeita a regimes de chuva intensa e com uma topografia acidentada). Trata-se de sua capacidade drenante, já que, se for observada a boa técnica de execução do calçamento (com pedras de junta seca, sem cimento ou aderentes), teremos diante de nós um piso permeável, capaz de absorver parte das águas pluviais;
4) a junta seca permite ainda uma incomparável capacidade de regeneração da calçada após as intervenções das concessionárias de serviços públicos tais como águas e esgotos, energia elétrica, gás, cabos subterrâneos etc. As pedras são retiradas com a ajuda de uma ferramenta manual e repostas tão logo seja concluída a intervenção. No caso das calçadas de cimento, além de necessitar do emprego de ensurdecedoras britadeiras para quebrar a calçada, elas mantém expostas as marcas dos remendos das sucessivas intervenções realizadas, gerando frequentes fissuras e trechos quebradiços entre a velha calçada e o trecho reconstruído;
5) a durabilidade dos pisos calcetados com pedra portuguesa em relação a outros tipos de revestimento (asfaltamento, cimentados, cerâmicos etc.) é bem conhecida e atestada por diversos autores. Acrescente-se ainda a significativa economia representada pelo baixo custo de manutenção ao longo do tempo, já que as pedras podem ser retiradas e reaproveitadas a cada reparo ou intervenção sofrida pelas calçadas;
6) por fim, embora esta listagem não seja exaustiva, destaca-se a indiscutível beleza dos mosaicos artísticos que ornamentam o piso de praças, calçadas e áreas públicas na cidade. Os desenhos formados, a habilidade do calceteiro e as tonalidades das pedras utilizadas conferem feições estéticas originais aos pisos, fazendo com que cada mosaico seja diferente dos demais.
As considerações aqui apresentadas têm por objetivo não apenas contribuir para o debate sobre as calçadas em pedra portuguesa da cidade, mas também ampliá-lo, aprofundando as questões que lhe são concernentes. Para que o “choque de ordem” não se imponha de forma autoritária e tecnocrática (ou venha a se esgotar apenas nos seus efeitos midiáticos), será necessário que se proceda também a um choque de gestão pública e democrática do espaço urbano. Significa dizer que uma cidade precisa ser construída e reconstruída todos os dias, pedrinha por pedrinha, tal como os mestres calceteiros nos ensinaram ao longo da história das cidades. E que a força de cada pedrinha decorre da força do sistema como um todo, gerado pelo fato de todas as pedrinhas compartilharem solidárias o mesmo projeto de cidade.”
*Cristovão Fernandes Duarte é Doutor em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ; Professor do Programa de Pós-Graduação em Urbanismo e da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ.