Edição 236 22 de janeiro de 2009
Sábado, 27 de dezembro de 2008. Aviões israelenses conduzem uma série de ataques contra instalações do Hamas na Faixa de Gaza, matando e ferindo centenas de pessoas. Apenas oito dias após o fim da trégua de seis meses entre Israel e o grupo militante islâmico, no último 19 de dezembro, teve início mais um triste capítulo na história de uma guerra que perdura há décadas.
Para Franklin Trein, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ, tanto a imprensa nacional quanto a estrangeira estão fazendo uma cobertura bastante precisa do conflito, dada a gravidade do assunto, embora o espaço conferido varie de acordo com o veículo de comunicação. No Brasil, segundo o professor, a mídia televisionada vem tratando a questão com mais destaque que a mídia escrita, que tem ficado um pouco aquém na apresentação de análises substantivas e consistentes.
Já nos Estados Unidos, a situação se inverte. Para Trein, enquanto as emissoras de televisão norte-americanas abordam o tema de maneira utópica, os principais jornais de grande circulação estão expondo análises que se diferenciam da forma como a sociedade do país costuma tratar este tipo de problema. “No entanto, percebe-se claramente que há certo compasso de espera a respeito da conjuntura que se criará depois da posse de Barack Obama. A transição de governo põe a mídia em sobreaviso, no aguardo de um pronunciamento do novo presidente sobre o conflito”, diz o professor. Perguntado sobre a situação na Faixa de Gaza, Obama afirmou que só falaria após a posse, que aconteceu ontem em Washington. “Acho que é uma atitude muito correta da parte dele, mas isto frustra um pouco as expectativas do que será o futuro próximo”, analisa Trein.
Na opinião do professor do IFCS, a mídia europeia é a que está fazendo a cobertura mais ampla do conflito, mostrando ao público elementos esclarecedores para o entendimento do processo que o desencadeia. “Isso acompanha, de certa forma, a mobilização da sociedade civil europeia em relação aos acontecimentos. Independente do fato de a Europa não ser um continente tradicionalmente islâmico, os europeus saem às ruas para protestar e manifestar sua inconformidade com os ataques desproporcionais de Israel contra o Hamas. A imprensa acaba repercutindo essas ações”, explica. Trein destaca que a mídia europeia está chamando a atenção para três aspectos fundamentais que ajudam a reavivar a memória acerca do quadro geral de relações que estão em jogo na Faixa de Gaza.
— O primeiro deles, sem dúvida, refere-se ao comportamento dos israelenses, que respeitaram a opinião pública mundial e as decisões das Nações Unidas apenas quando da criação do Estado de Israel. Depois disso, o país passou a atuar como senhor absoluto de seus interesses, detentor de direitos incontestáveis e legítimos para autorizar qualquer reação diante da mais elementar discordância sobre sua maneira de alcançar objetivos. Alheio aos custos humanos, sociais, políticos, econômicos e culturais que isto possa significar para outras populações, o Estado de Israel se sente no direito de impor suas vontades a qualquer preço — avalia.
O segundo aspecto levado em conta pela mídia europeia, de acordo com o docente, diz respeito ao fato de que Israel se desenvolveu, inclusive no âmbito militar, sob a proteção irrestrita dos EUA e do Reino Unido. Além disso, Trein ressalta a importância de a imprensa sublinhar que o território israelense configura-se como um enclave dentro de um ambiente geopolítico, “ao mesmo tempo, em conflito com o Ocidente e depositário de um manancial extraordinário de recursos energéticos não-renováveis indispensáveis para a rota do progresso capitalista”.
— Israel recebeu o apoio do mundo ocidental em troca de ser um ponto estratégico naquela região, onde os interesses do capital pelo petróleo são insubstituíveis. Todo o conhecimento científico e tecnológico desenvolvido até hoje não permite pensar na hipótese de se abrir mão do petróleo dos árabes. Para que os EUA e a Europa consigam se impor sem saírem de suas casernas, é necessário que haja alguém mais próximo dos árabes, e esse alguém é Israel — observa.
Segundo Trein, o último ponto alude à desproporcionalidade do crescimento demográfico das populações judia e árabe dentro do Estado de Israel. O professor acredita que, entre 25 e 50 anos, a quantidade de não-judeus no território israelense será consideravelmente superior ao número de judeus. “Certamente, isso poderá se tornar um problema bastante complexo para a gestão das relações de poder na região”.
Heranças do colonialismo europeu
Apesar do caráter esclarecedor destes três aspectos, Franklin Trein considera que seria interessante acrescentar outro ponto à cobertura midiática sobre o conflito em Gaza. “Acredito que este é um momento bem oportuno para revermos o colonialismo europeu e suas consequências, particularmente no período entre o final do século XIX e meados do século XX, quando a Segunda Guerra Mundial faz com que não haja mais condições para a manutenção dos impérios coloniais”, afirma. Para o professor, o colonialismo praticado por países como França, Grã-Bretanha, Bélgica e Holanda deixou na África, no sudeste da Ásia e no Oriente Médio um rastro de problemas que não se resolveram ao longo dos últimos cem anos e que não apresentam perspectivas de solução no século XXI.
— O conflito na Faixa de Gaza é consequência da maneira como os ingleses organizaram o processo de ocupação daquele território pelo Estado judeu. É verdade que lá já morreram milhares de inocentes, mas quantos milhões de inocentes morreram na África desde o final da Segunda Guerra Mundial? A situação que vemos em Gaza faz parte desse contexto de exercício de um poder destitucionário que não respeita valores como liberdade e inocência; apenas sua vontade de se apropriar do que o mundo produz. A Faixa de Gaza é somente o lugar onde essa efervescência está brotando, mas não é local onde ela se manifesta com mais violência. A África, sem dúvida, vive em circunstâncias muito piores — pondera.
Israel e a liberdade de imprensa
Sobre o fato de a polícia israelense controlar a entrada de jornalistas e fotógrafos na região do conflito, sob o argumento de que a medida visa “evitar problemas de segurança”, Trein acredita que essa postura reflete a incoerência entre o discurso e as ações de Israel. “Todo injusto quer esconder sua injustiça. Certamente, o estado de Israel não é um exemplo de democracia”, opina.
O professor observa ainda que, apesar de a imprensa mundial estar empenhada em incentivar o cessar-fogo, os profissionais da mídia vêm se omitindo em apontar possíveis soluções para o conflito. “Falta uma atitude pró-ativa”, resume. Embora os veículos de comunicação estejam exibindo uma “repercussão passiva dos acontecimentos”, Trein crê que a mídia consciente tem força para criar uma enorme pressão e fazer com que Israel e o Hamas entendam que o conflito precisa ser resolvido.
— Acredito que o momento dessa crise que está custando tantas vidas inocentes, pois a maioria de mortos são crianças, deve ser um período de reflexão para que nós consigamos identificar, historicamente, os reais responsáveis por essa geopolítica que traz tanta desgraça, destruição, sofrimento e miséria, aos quais nós assistimos quase que impotentes. Parece que a civilização avança, mas não consegue respeitar suas próprias regras de convivência. Se nós não podemos mais acreditar na capacidade de diálogo e de entendimento, o que nos resta? — questiona o professor.