Um triângulo rosa. Era com esse símbolo que os membros do Nazismo na Alemanha identificavam os homossexuais durante a Segunda Guerra Mundial. O “carimbo” contribuía para tornar ainda mais angustiante a passagem dos gays pelos campos de concentração. O triângulo colorido era o sinal que permitia uma série de humilhações e violências cometidas a homens e mulheres homossexuais não só por soldados nazistas, mas também pelos próprios companheiros presos.
Não há dúvida de que episódios de intolerância como os observados durante o Holocausto causem repulsa à opinião pública. Digno de estranhamento, no entanto, é que, mais de cinco décadas depois, ainda existam propostas cujo objetivo seja o de “carimbar” cidadãos, estimulando preconceitos e reforçando estigmas.
É dessa forma que o projeto de lei 2.204/2009, de autoria do deputado Jorge Babu (sem partido), vem sendo recebido por alguns setores da sociedade carioca. Em sua proposta, Babu, expulso do Partido dos Trabalhadores (PT) em janeiro deste ano por suspeita de envolvimento com milícias na Zona Oeste da capital fluminense, sugere que a Secretaria de Saúde disponibilize em seu site uma lista com o nome e o CPF de todos os soropositivos do Rio de Janeiro.
Evocando o princípio constitucional da isonomia, que professa ser dever do Estado tratar os iguais de forma igual e os diferentes de maneira diferente, Jorge Babu argumenta que a medida visa proteger os profissionais de Saúde contra a contaminação pelo vírus do HIV. Segundo o deputado, socorristas, médicos e enfermeiros têm o direito de saber a condição sorológica dos seus pacientes no momento do tratamento.
Para grande parte da população, inclusive para alguns deputados da Assembleia Legislativa, que consideram o projeto um dos piores a tramitarem pela Casa nos últimos anos, a “lista de Babu” é uma violação dos Direitos Humanos, na medida em que, entre outras coisas, priva cidadãos do direito, garantido pela Constituição, ao sigilo e à intimidade. Além de representar um retrocesso no combate à epidemia de HIV/AIDS no estado, a proposta, se aprovada, pode agravar a discriminação contra os soropositivos.
Para lançar luz sobre essa questão, o Olhar Virtual entrevistou Carla Luzia França Araújo, professora do Laboratório de Estudos em Política, Planejamento e Assistência em DST/AIDS do Hospital-escola São Francisco de Assis (HESFA-UFRJ). Conversamos também com João Vicente*, 53 anos, funcionário público aposentado, pai de três filhos que, há 16 anos, vive com o HIV. Confira!
“Eu tenho a impressão de que a proposta do deputado Jorge Babu foi um grande equívoco. Isso porque ela vai na contramão da discussão que temos sobre a AIDS no Brasil e da nossa política nacional de combate à doença.
Várias entidades aqui do Rio de Janeiro e o programa Nacional de DST/AIDS já manifestaram notas de repúdio ao projeto de lei. Tenho a impressão de que essa medida não vai agradar ninguém. Até porque ela é contra os direitos humanos; nenhuma outra patologia gera listagem como essa. Se fosse assim, os diabéticos, que padecem de tantos problemas com medicamentos e efeitos colaterais, também deveriam ter seus nomes listados em um site. Não dá pra compreender como, em pleno ano de 2009, alguém pode propor uma lei desse tipo.
Na convivência com pacientes, desde o momento do diagnóstico até o dia a dia nos ambulatórios, nós observamos que se manter no anonimato é fundamental para o soropositivo. Um dos nossos pacientes costuma dizer: ‘Só eu, o médico e Deus sabemos, e quero que continue assim.’ Muitas vezes, o medo de ser discriminado é tanto que faz com que o soropositivo abra mão de ter redes de apoio, importantes para que ele não se sinta sozinho.
Para se ter ideia de como o anonimato é importante, aqui no município do Rio de Janeiro existe a hierarquização e a territorialização dos serviços de atendimento médico. A atenção básica está muito ligada ao local onde o paciente mora e ao local do atendimento que ele deve procurar. Entretanto, em casos de HIV/AIDS, isso não é uma recomendação. Muitas vezes, o paciente prefere não ser atendido na unidade próxima à sua casa.
Nesse sentido, se o indivíduo sabe que seu nome irá parar em uma lista pública, ele pode declinar do acompanhamento médico, feito através de exames das taxas de CD4 (células de defesa que são atacadas pelo HIV) e da Carga Viral (volume de vírus no sangue), imprescindíveis para o médico definir o início do tratamento com o coquetel.
Vale ressaltar ainda que, na Saúde, existem os princípios fundamentais de Biossegurança. Esses princípios devem ser utilizados com todos, independentemente da condição sorológica do indivíduo. Diante disso, o argumento do deputado Babu de estar primando pelo bem-estar dos socorristas, enfermeiros e demais profissionais da Saúde é falho. O poder de infectividade de um acidente ocupacional com a hepatite B é muito maior do que com o HIV. Ainda assim, não existe uma lista de pessoas com hepatite B na Internet. A determinação da Organização Mundial da Saúde e do Ministério da Saúde é a de que haja precauções universais de segurança, ou seja, para todos. Elas servem, inclusive, para a proteção do próprio paciente. Ao utilizar as medidas de biossegurança, diminui-se o risco de contaminação de um paciente para o outro; por isso esse aparato — luvas e tudo mais — é imprescindível.
Quero crer que essa proposta foi mesmo um equívoco do deputado e espero que ele retire, porque atitudes como essa, além de serem infelizes, desprestigiam a carreira de Babu como político.”
“Em meados de 1993, eu comecei a sentir que não estava bem. Estava estressado por ocasião da morte de meu pai, havia emagrecido e apresentava algumas alterações na pele. Foi então que resolvi ir ao médico. Um dos profissionais que busquei me pediu o exame anti-HIV. Eu fiz, mas nunca imaginei que pudesse ter adquirido o vírus. Até porque, naquela época, falava-se muito em grupos de risco e eu não integrava nenhum deles. Hoje, sabe-se que não existem grupos, mas sim comportamentos de risco.
Os resultados demoraram muito a chegar e, quando eu descobri minha sorologia, foi um choque muito grande. Com o exame em mãos, tomei o cuidado de não procurar qualquer médico próximo à minha casa. Queria mesmo me precaver. Mas contei para a minha ex-esposa. Depois, fui chamando todos os meus irmãos e irmãs, um a um, para contar a eles. Falei também para alguns amigos mais próximos. E só. A reação das pessoas foi de choque. Mas nunca sofri grandes preconceitos. Cheguei a ter problemas com a família da minha ex-esposa; com a minha família, entretanto, nunca enfrentei qualquer adversidade. Mas já ouvi relatos de pessoas que foram expulsas de casa depois de assumirem sua sorologia. Assim como tenho informações de que, em favelas aqui do Rio, aqueles que, por qualquer motivo, são descobertos soropositivos acabam ameaçados de morte e, muitas vezes, assassinados.
Não acho que o soropositivo deva se esconder, se fechar para o mundo. Ele não deve ficar enclausurado. Mas acho que é direito da pessoa escolher para quem contar, em quem confiar. O anonimato nos protege do preconceito e também da proteção excessiva e da compaixão.
Por isso sou contra o projeto de lei idealizado por Jorge Babu. No meu entender, o deputado, que não pertence à área de Saúde, pouco entende de políticas públicas de Saúde e, portanto, deveria buscar se informar, junto a ONGs, para verificar quais as principais demandas dos soropositivos. Se uma lei dessa é aprovada, eu, por exemplo, me mudaria de bairro. Nunca vi necessidade de me abrir para a comunidade na qual vivo. Um projeto como o proposto pelo deputado só vai contribuir para aumentar o preconceito, que ainda é muito grande. Ele implicaria diversas coisas ruins. Acho, inclusive, que poderia iniciar uma nova temporada de caça às bruxas.”