Desde que tomou posse da prefeitura do município do Rio de Janeiro, no começo deste ano, Eduardo Paes tem tomado medidas que despertam polêmicas, como a operação “choque de ordem”, que prevê a demolição de construções irregulares e a retirada de mendigos das ruas. Além disso, decretos já publicados no Diário Oficial preveem a criação de normas de uso e ocupação do solo para as favelas de Vila Canoas e Pedra Bonita, em São Conrado, bairro da Zona Sul do Rio. Esta última medida remonta a um tema que incita debates e divide opiniões: a remoção de favelas.
A política de remoção das favelas já foi adotada em diferentes épocas na história do Rio de Janeiro. Na gestão do prefeito Pereira Passos, entre 1902 e 1906, houve o chamado “bota-abaixo”, que promoveu a demolição dos cortiços do centro da cidade, deixando grande número de pessoas desabrigadas. A população removida subiu os morros dando início ao processo de favelização. Em 1965, Carlos Lacerda pôs fim à favela do Esqueleto e em seu local foi construída a Universidade Estadual do Rio de Janeiro, a Uerj. Já em 1970, durante gestão de Negrão de Lima, a favela da Catacumba, na Lagoa, e a favela Praia do Pinto, no Leblon, também foram removidas.
Em entrevista, Marco Antônio Mello, coordenador do Laboratório de Etnografia Metropolitana (LeMetro) do IFCS, e Sérgio Ferraz, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da UFRJ, comentam questões relativas à remoção das favelas.
Entre as políticas públicas de urbanização e habitação colocadas em marcha no Rio de Janeiro, a “remoção de favelas” é sem nenhuma dúvida aquela mais inconsequente e de triste memória na morfologia urbana de nossa cidade e sua região metropolitana. Os seus efeitos perversos deixaram marcas profundas na história e trajetória de grupos inteiros submetidos ao que eu costumo chamar de “diáspora urbana forçada” dos anos 60/70.
A “remoção de favelas” contou desde o seu início com críticos severos que antecipavam os cenários urbanos que logo após iriam pouco a pouco se configurando e deixando abertas feridas mal cicatrizadas, aquelas infringidas pela arrogância de um planejamento de extração autoritária apoiado na truculência de representantes do aparelho de estado de então.
A remoção impôs uma perversa mobilidade residencial forçada aos habitantes de uma cidade marcada pelas desigualdades. A transferência da população foi documentada e acompanhada, não sem indignação, por toda uma geração de jovens e criticamente empenhados arquitetos, sociólogos, assistentes sociais, geógrafos e antropólogos, por exemplo. Entre os trabalhos que documentaram o processo da chamada “política de remoção de favelas”, talvez aquele que melhor ofereça um quadro abrangente e sensível sobre as suas implicações seja o de minha colega professora Lícia do Prado Valladares, socióloga e hoje professora titular na Université de Lille 1, na França. Passa-se uma casa (1978) é o título emblemático de seu livro, originalmente sua tese de doutoramento na Université de Toulouse (1974). Mas seria talvez do mesmo modo esclarecedora a leitura do livro de Carlos Nelson Ferreira dos Santos, Movimentos Urbanos no Rio de Janeiro (1981), pois como urbanista e antropólogo soube imprimir ao seu trabalho analítico e etnográfico sobre os chamados “movimentos sociais” um viés original na consideração seja do processo de urbanização de Brás de Pina, conduzido pioneiramente pelos seus próprios moradores, como também os casos de Morro Azul e finalmente do Catumbi. Ou seja, o processo inscrito sob suas diversas e diferenciadas formas no espaço urbano carioca.
Jovens arquitetos e urbanistas, muitos deles inspirados pela leitura de Vida e Morte das Grandes Cidades Americanas (1961), de Jane Jacobs, crítica do urbanismo oficial americano dos anos 50, e por John Turner e sua enigmática fórmula que dizia mais ou menos que “a favela não é um problema, mas uma solução”, passariam a tratar das questões da habitação, da urbanização e do planejamento urbano de uma perspectiva que os aproximava daquela propugnada no Brasil pelas teses apresentadas por Dom Hélder Câmara desde sua participação no Congresso Eucarístico Internacional dos anos 50 (que se deu nos espaços ainda não totalmente organizados do Aterro do Flamengo). Dom Hélder dizia que não adiantaria “varrer” os operários para longe da casa dos patrões, lançando-os nas periferias urbanas sem infraestrutura alguma, sem saneamento básico, sem meios eficientes de transporte etc. No Brasil Dom Hélder ecoava de certo modo a ação de muitos padres operários europeus, especialmente franceses, como Pe. Lebret, Pe. Pierre Lande, Abbé Pierre e tantos outros empenhados no trabalho pastoral junto aos despossuídos dos assentamentos urbanos onde habitavam os pobres nos países europeus.
No Rio de Janeiro os conflitos a respeito das soluções a serem empregadas quanto ao processo de “urbanização” ou “remoção” acabaram levando Dom Hélder a conseguir apoio para o seu empreendimento mais emblemático no que se refere ao assunto: a “Cruzada São Sebastião do Leblon”. No entanto, o exemplo da Cruzada não foi seguido para melhor equacionar o problema habitacional numa grande cidade em vertiginosa expansão urbana como o Rio de Janeiro. Prevaleceram os conjuntos habitacionais nas periferias da região metropolitana. O estado produzindo a favela, como têm demonstrado inúmeros estudos, sobressaindo entre eles a tese de doutorado defendida na Université de Paris Sete por Rafael Soares Gonçalves, professor da PUC e membro do LeMetro/IFCS-UFRJ, sobre a constituição da favela como um objeto jurídico. O estado como produtor de habitações de 15 metros quadrados como, por exemplo, é o caso de "Vila Paciência", em Santa Cruz, para onde foram “varridas” muitas das famílias da Praia do Pinto.
Enfim, ao longo de nossa história urbana recente vimos, no Rio de Janeiro, diversos experimentos a respeito da questão da habitação e da urbanização difundirem uma espécie de banimento dos “pobres” do concerto da “cidade política”. Mas tal atitude, e seus correlatos no âmbito de uma política pública, como todos que vivemos nas grandes cidades sabemos muitíssimo bem, além de gerar procedimentos inócuos, logo logo se revelam desastrosas em suas consequências. A reedição de medidas de mesma família, tais como a “redução” da favela, redução no sentido político do termo, pela imposição de uma “muralha”, “muro de contenção”, “muro de arrimo”, para aprumar uma cidade desengonçada e mal ajambrada em função dos desmandos e pela incúria do poder público, emparedando e “guetificando” intramuros os “pobres urbanos”, certamente não deveria encontrar nenhuma aceitação por parte dos cidadãos desta mesma cidade. Mas há quem sugira nos jornais que em vez de “muros” sejam colocadas “grades”, prosaicas grades permitindo aos “favelados” a contemplação da paisagem, como se pretende no elegante bairro do Jardim Botânico.
Intervenções urbanísticas que não considerem os moradores dessas áreas como sujeitos políticos, como interlocutores competentes a propósito de seus modos de habitar e de gerir as suas casas, estão desde o seu nascedouro condenadas ao fracasso. O que é mais interessante é que ninguém sabe muito bem o que é uma favela, apesar das várias e inconsistentes definições encontradas aqui e ali.
Numa espécie de rápida “visita guiada” à Maré quando de sua chegada ao Rio, e depois tendo visitado o Morro das Andorinhas e o casario de pescadores, em Itaipu (Niterói), meu colega e amigo da, Laurent Thévenot continuaria sua curiosa “viagem” brasileira. Dois dias após sua chegada ao Rio iria ter uma experiência que o marcaria e a todos nós seus amigos. Professor Laurent Thévenot, depois de ter passado uma tarde entre amigos no Morro do Chapéu Mangueira, de ter visitado o Morro da Babilônia, ter passado a manhã na Cruzada São Sebastião e ter circulado com amigas moradoras da “Cruzada” em um moderníssimo shopping (constatando o quão evasivo da privacidade da gente da “Cruzada” era o megaestabelecimento comercial) e ouvido comentários de seus frequentadores carregados de preconceito sobre os seus moradores, perguntava: “Mas, afinal, o que é uma 'favela'?”.
Os impactos urbanos e geográficos gerados pela expansão de favelas nos morros cariocas são variáveis, dependem de fatores como localização, topografia e tamanho. Sendo assim, cada caso precisa ser avaliado. No entanto, a degradação ambiental e urbanística não está associada direta e exclusivamente às favelas. Ora, a história urbana do Rio nos diz que a degradação das matas dos morros cariocas é devida primordialmente a atividades econômicas, sobretudo extrativas, e que remontam ao século XIX e às primeiras décadas do século XX. Sobretudo a encosta norte do Maciço da Tijuca foi devastada nessas condições.
A ocupação com favelas vem posteriormente, como é o caso das favelas da Grande Tijuca (Salgueiro, Formiga, Borel, Andaraí), e em geral já encontra os morros sem matas. Posteriormente, com a urbanização dessas favelas consolidadas, em especial com o Programa Favela-Bairro e com o Projeto Mutirão Reflorestamento, grande parte dessas encostas passou por um processo de recuperação. Mais de 1.000 hectares de encostas foram reflorestadas.
Até mesmo em regiões para as quais a mídia tem dado grande destaque, como a Zona Sul, em particular a área da Lagoa Rodrigo de Freitas, houve a expansão da área florestada nas duas últimas décadas. A encosta da Fonte da Saudade, por exemplo, há vinte anos era completamente coberta por capim-colonião, e hoje está coberta por floresta. A encosta do Morro Dois Irmãos, no Leblon, igualmente.
Outro aspecto a destacar é que não são apenas as favelas que ocupam as encostas. Também loteamentos formais, aprovados pela Prefeitura, foram implantados. Na mesma encosta da Fonte da Saudade, na Lagoa, pode-se observar a ocupação das ruas Sacopã e Vitória Régia, com edifícios e casas, inclusive com um conjunto de edifícios que se destaca na paisagem por sua impropriedade em relação à topografia e à vegetação. O Alto Leblon é outro exemplo.
Digo isso para registrar que os impactos urbanos e geográficos negativos na ocupação dos morros cariocas são práticas antigas, que perpassam as classes de renda, e que só recentemente, com o aumento da consciência ambiental, passaram a ser vistas com mais cuidado pela população.
Penso que, para atenuar esses impactos, é indispensável reforçar a consciência de proteção ao patrimônio natural – e igualmente ao patrimônio construído, como condição indispensável para uma tomada de posição que seja duradoura, que não seja episódica ou dirigida apenas aos mais pobres.
A remoção de favelas está na pauta da mídia no momento e parece ser apresentada como uma solução para os problemas da cidade. Acho uma grande injustiça essa associação. A história do Rio nos mostra os enormes problemas que resultaram da política de remoção compulsória que foi adotada nos anos 60 e 70.
No entanto, não precisamos achar que nenhum caso de remoção é correto ou justo. Há condições, inclusive previstas nas leis, em que a remoção pode ser necessária, como quando as moradias se encontram em áreas de risco ou de proteção ambiental. Há alguns anos, foram removidas favelas que se localizavam embaixo de viadutos, sem possibilidade de serem urbanizadas. É um caso típico em que a remoção é uma alternativa adequada. No entanto, as famílias não podem ser compulsoriamente levadas para lugares quaisquer, sem oferta de outras escolhas, a seu juízo.
As favelas consolidadas, que podem ser urbanizadas, devem ter essa possibilidade. É mais vantajoso para os moradores, pois na consolidação da favela pressupõe-se o estabelecimento de vínculos econômicos, sociais e afetivos que fazem uma enorme diferença no embate da vida urbana. Igualmente, é mais vantajoso para os governos, nos custos financeiros envolvidos. Urbanizar é muito mais barato do que construir conjuntos residenciais. E, sobretudo, pode ser mais conveniente para a própria cidade, que se enriquece na diversidade e no respeito à cidadania. Afinal, os moradores das favelas são cidadãos brasileiros. Em parte, infelizmente, seus direitos não estão plenamente assegurados pelo poder público, na medida em que muitas favelas se encontram sob domínio da bandidagem, a qual impõe aos moradores constrangimentos inaceitáveis, que reduzem substancialmente a própria cidadania.
A contenção da expansão das favelas pressupõe uma política integrada e abrangente, em que se inclua o domínio, pelo Estado, dos territórios ocupados por favelas, garantindo neles a vigência da Constituição brasileira; a universalização do crédito imobiliário, para que as famílias possam decidir onde, como e em que condições morar — em muitos casos, crédito subsidiado; a melhora do transporte público, integrando as diversas partes da cidade metropolitana em qualidade e em preço. Penso que, neste caso, é indispensável a transformação dos trens suburbanos em metrô.
Além disso, é necessária uma simplificação nos procedimentos administrativos e cartoriais relativos à regularização fundiária, sobretudo para atender aos loteamentos irregulares e aos conjuntos residenciais, muitos deles construídos há décadas e ainda sem titulação finalizada.