De Olho na Mídia

O massacre que o mundo não viu



Aline Durães


É evidente que nem todos os acontecimentos mundiais encontram espaço de divulgação nas páginas dos jornais. A mídia seleciona (o tempo todo) as notícias que serão lidas e debatidas pela opinião pública. O curioso, no entanto, é o silêncio que ronda determinados temas que, pela dimensão e gravidade, deveriam ganhar uma visibilidade maior.


Exemplo disso é o massacre de muçulmanos chineses, ocorrido no início do mês. Desde 5 de julho, um domingo, a cidade de Urumqi, na região de Xinjiang, interior da China, vivencia uma série de tumultos que contabiliza cerca de 180 mortos e mais de mil feridos.

O conflito, um dos mais importantes desde o massacre da Praça da Paz Celestial, ocorrido em 1989, se iniciou com um ato organizado por chineses da etnia uigur. Os uigures foram às ruas, no último dia 5, protestar contra a morte de dois jovens, assassinados por chineses da etnia han, grupo majoritário no país. Os rapazes foram acusados de abusar sexualmente de uma han, na semana anterior ao protesto.

A manifestação dos uigures muçulmanos foi duramente repelida pela polícia chinesa, que justificou a repressão com o argumento de que os manifestantes atearam fogo e depredaram lojas e automóveis. Na terça-feira, 7 de julho, como forma de retaliar os protestos de domingo, milhares de membros da etnia han, armados com paus e pedras, avançaram contra os uigures, agravando ainda mais o clima de violência e caos em Urumqi.


Para Giuseppe Cocco, cientista político e professor da Escola de Serviço Social (ESS) da UFRJ, as raízes das recentes tensões na China estão na crise global. Segundo ele, a crise produziu queda nas taxas de crescimento econômico do país. Essas mudanças exigiriam alterações substanciais no regime de poder chinês, para as quais o governo não está preparado. “Esse conflito tem elementos étnicos, religiosos, mas a questão fundamental são os efeitos do capitalismo global sobre a economia chinesa. A China está vivenciando um esgotamento do seu modelo de crescimento. É preciso mudar e isso implica transformações políticas. É aí que as multidões entram em jogo e as tensões sociais aparecem.”

Versões e fatos

Informações desencontradas e, muitas vezes, contraditórias impedem a análise imparcial desse episódio. Os muçulmanos afirmam o caráter pacífico da manifestação de 5 de julho, enquanto o governo chinês insiste em culpar os uigures por terem incitado a violência.

Da mesma forma, autoridades do governo local de Xinjiang acusam uigures exilados, interessados em fomentar a luta pela independência dessa região frente à China, de estarem por trás dos tumultos. Os grupos uigures negam, pontuando que a manifestação foi reprimida com uso de força indiscriminada pelo aparato policial chinês. Para corroborar a versão oficial, imagens de pessoas sendo agredidas por supostos manifestantes foram divulgadas em programas de televisão, o que pode ter provocado as ações de vingança perpetradas por membros da etnia han.

Organizações como a Human Rights Watch (HRW) e a Repórteres sem Fronteiras já se pronunciaram sobre o assunto, condenando a violência exercida pelo governo de Pequim e reivindicando uma investigação independente, que fuja à censura praticada na China. “Quando um governo não permite acesso livre às informações, fica difícil saber a verdade. De alguma forma, essa censura esconde e legitima a repressão. É sempre o inimigo exterior que legitima a violência interna”, alerta Giuseppe Cocco.

O porquê do silêncio

A mídia ocidental e, mais especificamente, a grande imprensa brasileira têm negligenciado os recentes conflitos no oeste da China. Poucos foram os veículos que abriram espaço para a discussão acerca das causas e  consequências dos tumultos ocorridos em Urumqi.

Para o professor Giuseppe Cocco, a negligência da mídia reflete o completo despreparo dos profissionais brasileiros em noticiar fatos internacionais. “A mídia brasileira é reacionária e pobre. A cobertura das notícias internacionais é feita por meio de agências, por isso não há o interesse em fazer uma análise mais completa e  mobilizar especialistas e intelectuais para discutirem o assunto”, pontua.

Cocco acredita que a consequência desse processo é a partidarização do discurso da imprensa. Como exemplo, cita as reportagens relacionadas ao papel desempenhado pelo Brasil na redefinição econômica global neste início de século. Ele lembra que os jornais estrangeiros abordam com mais propriedade a influência exercida pelo país do que a mídia nacional. “A imprensa nacional ignora isso, pois é contrária ao Lula. Ela está aqui mais para desinformar e manipular mesmo”, opina.

China muçulmana: um olhar no passado

Há cerca de 800 anos, o Islamismo se estabelecia na China como uma religião. Entre os anos de 1958 e 1976, durante a Revolução Cultural e sob o slogan maoísta de “destruir o velho mundo e construir um novo”, o Islamismo foi duramente combatido. Mesquitas foram destruídas e sacerdotes destituídos. O Partido Comunista enviou, à época, milhares de chineses da etnia han para a região que hoje sofre com o conflito. A intenção era dispersar e enfraquecer os muçulmanos uigures, até então maioria na área.

Nas décadas posteriores, entretanto, a China experimentou um afrouxamento da repressão religiosa e a liberdade de culto foi permitida pelo Partido Único, o que possibilitou um modesto crescimento do Islamismo. Não existem estatísticas oficiais, mas se estima que entre 20 e 130 milhões de muçulmanos vivam nos territórios chineses.

A área oeste do país, onde estão os uigures, é especialmente problemática para o governo chinês, já que é grande o número de muçulmanos da etnia uigur que desejam se separar da China para criar o Estado do Turcomenistão do Leste. “Nesse momento de crise, o separatismo pode virar uma bandeira. O Islã pode ser usado para contestar o regime autoritário”, finaliza Cocco.