Consagrado como a festa de maior abrangência e também a mais popular do Brasil, o carnaval possui peculiaridades em cada região do país. No Rio de Janeiro, a festa é marcada pelo desfile das escolas de samba que atrai milhares de foliões não só do Brasil e de suas diferentes regiões, mas também de outros países. Para desvendar o processo ritualístico que envolve a preparação do carnaval todos os anos, desde os bastidores da festa até o momento mais esperado, o desfile, a professora de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti escreveu Carnaval carioca: dos bastidores ao desfile, que é uma reescritura de sua tese de doutorado.
Na obra, a autora analisa o processo cultural, que atinge a cidade do Rio de Janeiro, em suas dimensões estéticas e expressivas desde o desenvolvimento do enredo até sua transformação na linguagem plástica e visual das fantasias e alegorias. A professora avalia ainda a linguagem rítmica e musical do samba-enredo e o "samba no pé" do folião.
Em Carnaval carioca: dos bastidores ao desfile, a autora tenta desnudar o preconceito criado em torno do caráter espetacular que a festa adquiriu ao longo do tempo. Para ela, essa particularidade não é a “descaracterização de uma pureza autêntica” do carnaval, uma vez que essa autenticidade não existe.
Para compreender uma pouco mais a respeito da festa que exerce fascínio sobre grande parte da população do país e aprofundar a discussão sobre o carnaval, o Olhar Virtual entrevistou Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti.
Olhar Virtual: Como surgiu a ideia de escrever o livro e como ele está estruturado?
Maria Laura: O livro é fruto de minha tese de doutorado, no Museu Nacional/UFRJ. Sempre gostei muito de escrever. Minha dissertação de mestrado, sobre o espiritismo kardecista (O Mundo Invisível: cosmologia, sistema ritual e noção da pessoa no espiritismo), já tinha sido publicada, e gostei muito da experiência. Depois da defesa do doutorado, estimulada por alguns membros da banca, dediquei-me à releitura e à reescrita da tese. Como o tempo para a escrita era escasso, durante alguns meses, uma tarde da semana foi religiosamente dedicada a isso. Funcionou. A estrutura é a da tese, mas modifiquei um pouco a organização e busquei tornar o texto o mais fluente e prazeroso possível. Afinal, o assunto é o carnaval! A ideia é levar o leitor a acompanhar o desdobramento do processo de confecção de um desfile de carnaval ao longo de todo um ciclo carnavalesco. O exame das principais linguagens artísticas e expressivas do desfile – música e ritmo com o samba-enredo, plasticidade e visualidade com as alegorias e as fantasias – guia o percurso por entre mundos e espaços sociais muito diversos entre si. Tudo converge para o desfecho festivo e ritual na passarela.
Olhar Virtual: Quais são, na sua opinião, os pontos marcantes da obra?
Maria Laura: A visão do desfile como um processo ritual ao mesmo tempo festivo e competitivo é um ponto-chave. Um imenso conjunto de atividades e interações movimenta o ciclo anual da vida de uma escola de samba. Isso só pode ser compreendido se vemos o desfile como uma disputa que coloca um enorme universo de escolas de samba em relação e em movimento na vida da cidade. Mal acabado um desfile, o outro ciclo já se reinicia; tudo no carnaval das escolas de samba está sempre projetado para o futuro, há um ponto de chegada que se almeja alcançar: passar bem na passarela. O tempo de um ano situado entre um carnaval e o próximo torna-se assim um tempo culturalmente cheio e situado sempre à frente do tempo rotineiro – para o mundo do carnaval, já estamos em pleno carnaval 2010!
Outro aspecto importante é a visão do desfile carnavalesco como um processo cultural no sentido pleno do termo, isto é, sua dinâmica é feita de contradições, cooperações, conflitos. Como tratamos aqui da cultura popular, o sucesso do desfile na vida da cidade, sua dimensão visual espetacular, a presença da mídia, sua comercialização são muitas vezes vistos de forma preconceituosa como sinônimos de descaracterização de uma pureza autêntica. Procuro mostrar que essa ideia de pureza originária é um equívoco. As escolas de samba são fruto de interações, agregações, tensões e colaborações na trama urbana, são fruto de uma sociedade heterogênea e complexa, foram desde sempre lugares privilegiados de articulação entre camadas e grupos sociais diferenciados. Tiveram, e têm, um papel decisivo na construção do Rio de Janeiro moderno, expressam todas as tensões, grandezas, belezas e conflitos da nossa cidade.
A ideia de mediação cultural é outro elemento-chave. Nesse ponto, o enfoque do personagem do carnavalesco é fundamental, é o seu trânsito – sempre negociado de múltiplas maneiras – por entre os diversos aspectos artísticos do desfile, e por entre os setores muito diversos de uma escola de samba, que conduz a própria narrativa do livro. Procurei mostrar a heterogeneidade interna às próprias escolas, sua complexidade social e, ao mesmo tempo, a natureza coletiva das sofisticadas artes e fazeres do desfile. É muita gente talentosa e criativa que ali se agrega. Tem também os aspectos muito problemáticos, dos quais procurei não me esquivar, como a importância do mecenato do jogo do bicho e da patronagem dos bicheiros nisso tudo.
Olhar Virtual: O livro chama-se Carnaval carioca: dos bastidores ao desfile. Como é a rede de relações entre os diferentes atores sociais (os compositores, os chefes de ala, os inúmeros artistas, entre outros) no processo carnavalesco que vai desde os bastidores até o momento tão esperado do desfile?
Maria Laura: Dentro de um carnaval há muitos carnavais. Cada segmento da escola de samba tem uma esfera de atividade, um mundo social em si mesmo complexo, pois, além de cada um deles se relacionar entre si, com diferentes graus de proximidade, relacionam-se também com seus congêneres das outras escolas. É um vasto circuito de trocas sociais que se abre com o pertencimento a uma escola de samba. A tensão entre a ideia de “visual” e de “samba no pé” perpassa todo o processo. Na organização social da escola e na confecção do desfile, o visual e o samba põem, de um lado, por exemplo, o barracão – o espaço privilegiado de confecção das alegorias – e, de outro, a quadra – o lugar por excelência dos ensaios da bateria, das competições internas dos sambas-enredos, das performances das porta-bandeiras e mestres-sala. No desfile, a tensão e a complementação entre a linguagem plástica e visual das alegorias e fantasias, e a linguagem rítmica e musical dos sambas-enredos, são fundamentais para o seu sucesso como forma carnavalesca característica.
Olhar Virtual: Em que medida o carnaval se constitui como um fenômeno de construção da identidade brasileira?
Maria Laura: O Brasil tem certamente um dos mais expressivos carnavais do mundo, muito diverso e rico. As escolas de samba em especial fizeram muito pela divulgação desse carnaval no mundo, e serviram muito, sim, de marca identitária. Há redes de samba que atravessam o mundo, escolas por aí afora. Mas eu falo pouco sobre identidade brasileira. Acho que sobre esse assunto o Roberto DaMatta, que foi meu professor e a quem devo o meu interesse pelos rituais, fala melhor do que ninguém. Procurei outros ângulos de visão para construir meu próprio trabalho.
Olhar Virtual: O carnaval era uma manifestação tipicamente popular que, ao longo dos anos, passou por algumas transformações. Fala-se, atualmente, na midiatização do carnaval. A mídia interferiu no modo de produção do carnaval? Como isso ocorreu efetivamente?
Maria Laura: A televisão, assim como o público pagante nas arquibancadas, estão dentro do carnaval desde pelo menos os anos 1960, ou seja, desde muito antes do Sambódromo. O próprio samba, como gênero musical, do qual o samba-enredo pode ser visto como um subgênero, nasceu junto com a expansão do rádio e da indústria fonográfica, com a complexificação da vida urbana. A natureza espetacular é inerente ao desfile das escolas de samba – elas querem ser vistas e admiradas. No carnaval, brinca-se também de ser visto e admirado, e de ver e admirar. Essa visualidade torna obviamente as escolas muito “televisivas”. Mas a televisão transmite o desfile de uma forma inteiramente anódina e quase fria. Não precisava ser assim... E, ainda assim, quanta gente não se apaixona pelos desfiles através da televisão e vem desfilar? Gente de dentro do Brasil mesmo, de outros estados, de outras cidades, além dos estrangeiros. O desfile transmitido pela televisão é um outro processo cultural que mereceria ser estudado por si só. O que procuro mostrar com o livro é que o desfile permanece, no seu centro, um campo de presença, um processo cultural profundamente ligado à experiência dos sujeitos que nele se investem.
Olhar Virtual: Qual é a importância do seu estudo para a sociedade contemporânea?
Maria Laura: Sobre a importância do meu próprio estudo é melhor deixar os outros ajuizarem. O que posso dizer é que, nesse processo, além de já ter me apaixonado pela Antropologia, me apaixonei também pelo carnaval e pelo estudo dos rituais, e que desejo que o meu trabalho possa ser lido com interesse e continue estimulando novas pesquisas.