Dos diários escritos á meia-luz, no interior do quarto, aos blogs e às paginas pessoais no Orkut, YouTube, Facebook, Twitter, LastFM, na Internet: o privado tornou-se público. Textos, fotos e vídeos são utilizados para autodefinição na Web 2.0, onde todos podem "ser alguém" por meio de seus perfis visualizados por amigos e desconhecidos. Junto com a invasão consentida de privacidade, as aparências imperam no mundo virtual, como há 40 anos, Guy Debord já dizia no livro, e mais tarde filme, A Sociedade do Espetáculo: “O espetáculo é a afirmação da aparência e a afirmação de toda a vida humana (e, portanto, social) como simples aparência”.
Em diálogo com o pensador francês, Paula Sibilia, doutora em Comunicação pela Escola de Comunicação (ECO), da UFRJ, estudou o assunto para sua tese, premiada como a melhor de 2007. No ano seguinte, o tema rendeu o livro O Show do Eu: A intimidade como espetáculo (Nova Fronteira). No ensaio, Paula aborda questões da superexposição e do conceito de intimidade na Internet e em reality shows, que acabam se tornando o que ela chama de "espetacularização do eu", traçando ao mesmo tempo comparações com hábitos do passado para explicar a evolução do "aparecer para ser". Em entrevista ao Olhar Virtual, Paula destacou os principais pontos apresentados em seu livro.
Olhar Virtual: Como chegou ao tema?
O tema deste ensaio surgiu como um projeto de Doutorado, apresentado em 2003, na ECO. Na época, os blogs apareciam como uma novidade que suscitava certa perplexidade e demandava explicações, ao serem definidos como diários íntimos que, no entanto, apresentavam o “detalhe” de serem publicados na Internet. A minha questão, portanto, partiu desse aparente paradoxo: que tipo de intimidade é essa, que passou a se expor sem pudores diante dos milhões de olhos que têm acesso à rede mundial de computadores?
Nos quatro anos seguintes, nos quais desenvolvi a minha pesquisa, surgiram outros fenômenos que contribuíram para aprofundar essa tendência tão contemporânea de exposição de intimidade de “qualquer um” por toda parte. Refiro-me aos reality e talk shows da televisão; às redes sociais interativas como o Orkut, o MySpace, o Twitter e o Facebook; ao uso crescente das webcams para exibir tudo quanto ocorre nos mais diversos ambientes privados; aos fotologs que expõem fotografias dos usuários da Internet e aos vídeos caseiros que se expõem em sites como o Youtube.
Olhar Virtual: A “espetacularização do eu” de hoje encontra precedentes que tenham marcado uma época no passado? Qual a evolução desse fenômeno?
Se compararmos os blogs e fotologs atuais com os diários íntimos tradicionais observaremos dois tipos de ferramentas para a autoconstrução: duas classes de instrumentos bastante diferentes que as pessoas utilizam para edificar suas personalidades. Enquanto aquelas práticas que tiveram seu apogeu no século XIX e na primeira metade do XX eram claramente diários “íntimos”, no sentido original do termo, as novidades que hoje proliferam na Internet poderiam ser definidas mais exatamente como diários “éxtimos”, recorrendo a um neologismo que pretende dar conta dos paradoxos dessas novas práticas que escancaram a velha privacidade.
Olhar Virtual: Pode explicar melhor as diferenças entre os diários íntimos e os diários “éxtimos”?
A escrita de diários íntimos tradicionais foi uma atividade muito estendida nos últimos dois séculos da Era Moderna, praticada intensamente por homens, mulheres e, também, pelas crianças da época. Essas confissões eram registradas todos os dias no papel, numa tarefa que não demandava apenas a perseverança desse esforço cotidiano de autoconhecimento mas, também, a preservação do segredo na privacidade do lar. Era uma prática solitária, um diálogo que o autor mantinha diariamente consigo mesmo, e que devia se realizar no silêncio dos ambientes privados. Por isso, o diário íntimo era uma ferramenta para a criação de si, pois ajudava seu autor a construir o que ele era, permitia que cada sujeito organizasse, a partir da matéria caótica que constituía sua própria vida, um eu coerente e uma história vital com sentido. Esse eu não era apenas o autor do diário que assinava esses textos introspectivos, mas era também seu narrador e seu personagem principal.
Os novos gêneros autobiográficos que hoje inundam a Web parecem herdeiros dessas velhas ferramentas para a autoconstrução. No entanto, há diferenças muito significativas, porque diferentemente da solidão e do silêncio requeridos por esse antigo diálogo consigo mesmo, estes novos instrumentos são interativos e escancarados. A construção de si que se realiza na Web 2.0 ocorre na visibilidade das telas globais, e muito mais do que à introspecção ou ao mergulho dentro da própria interioridade enigmática, leva a se mostrar e a transformar o próprio eu em um show.
Olhar Virtual: Em que consiste o conceito do “eu” como marca?
Vivemos, atualmente, numa época em que o mercado estende seus tentáculos por toda parte, atingindo certos âmbitos da existência cuja mercantilização teria sido impensável algum tempo atrás. Assim, hoje somos acometidos por uma série de forças históricas, tanto econômicas como políticas e socioculturais, que nos incitam a espetacularizar a própria vida para posicioná-la da melhor maneira possível no mercado das aparências. E, em definitiva, para ter condições de ser alguém.
Acontece que a sociedade contemporânea precisa de certos “corpos” e de certos “modos de ser” para poder funcionar com maior eficácia, e as ferramentas disponíveis na Web 2.0 servem como plataformas de treinamento para desenvolver essas habilidades hoje tão necessárias: a capacidade de se mostrar, por exemplo, de converter o próprio eu numa marca bem-sucedida, capaz de conquistar o prezado campo da visibilidade.
Olhar Virtual: Por quê?
Porque nesta sociedade, que se articula em função do valor concedido às imagens, só é o que se vê. Por isso, nas telas eletrônicas são criados, constantemente, tipos de eu que precisam aparecer para ser, e que somente são porque aparecem no rutilante espaço midiático. Nada disso é casual nem irrelevante; ao contrário, esses movimentos obedecem a uma série de decisões históricas quanto ao projeto de mundo em que vivemos, e azeitam suas engrenagens para que essa maquinaria funcione da melhor maneira possível.
Olhar Virtual: Orkut, Facebook, My Space, Youtube e blogs estimulam os perfis e as definições do “eu”. Com isso, o indivíduo está sempre se definindo, expondo seus gostos e interesses. Há uma explicação para esse estímulo ao autoconhecimento e à necessidade de conhecer o outro por textos, vídeos e fotos?
Há explicações, sim, para essa pressão que hoje se descarrega sobre os sujeitos contemporâneos, como uma incitação a se definir constantemente e a se “confessar”, a falar de si, de seus próprios gostos e preferências de consumo, de seus hábitos mais íntimos e todas as minúcias que compõem suas vidas.
Em primeiro lugar e no sentido mais óbvio, toda essa informação é extremamente útil em termos de publicidade e de marketing. Em segundo lugar, se o que somos se define cada vez mais sobre aquilo que mostramos, então nesta “sociedade do espetáculo” é fundamental não descuidar essa exibição constante para poder ser alguém.
Nos últimos anos, aprendemos a estar conectados o tempo todo, a estarmos sempre disponíveis e potencialmente em contato. Aprendemos tanto a dor como a delícia dessas novas demandas. Ou seja: as desfrutamos e as sofremos ao mesmo tempo. Desejamos suas vantagens e buscamos avidamente os prazeres que nos concedem, embora também padeçamos suas exigências e rigores que muitas vezes nos asfixiam, sobrecarregam e estressam. Ou nos deixam exaustos e perplexos, sem compreendermos muito bem qual é o sentido de toda essa vertigem que nos leva a estarmos o tempo todo nos reportando.
Olhar Virtual: Como podemos avaliar as origens da superexposição na Web 2.0?
Minha hipótese é a de uma espécie de mutação histórica nos “modos de ser”, e que essa importante transformação obedece a uma série de interesses econômicos, políticos e socioculturais. Esses fenômenos tão atuais de exibição da intimidade e espetacularização do eu nos diversos meios de comunicação seriam, portanto, um sintoma de grandes mudanças decantadas nas últimas décadas. Um conjunto de deslocamentos que afetam os processos de construção de identidades, e que terminaram se consumando nestes anos mais recentes. Pois teria ocorrido uma gradativa exteriorização do eu, obedecendo aos múltiplos estímulos que orientam a construção de si para a visibilidade.
Essas personalidades que se criam no espaço visível dos media buscam os olhares alheios e pretendem conquistá-los. Esse modelo de eu contrasta com aquele outro que teve seu auge até algum tempo atrás e que agora parece estar ficando obsoleto: aquele que se construía prioritariamente em um diálogo intenso, privado, solitário e silencioso, utilizando ferramentas como os diários íntimos tradicionais, o diálogo epistolar, a psicanálise, a leitura de romances e outras modalidades da introspecção.
Tudo isso obedece a demandas históricas muito complexas, porém perfeitamente identificáveis, diante das quais não surpreende que hoje proliferem esses “modos de ser” que precisam da confirmação do olhar dos outros para consumar a sua existência: trata-se de um tipo de eu compatível com as exigências e demandas do mundo contemporâneo.
Olhar Virtual: Estamos numa “sociedade de controle”?
Acho que tudo o que está ocorrendo tem uma relação direta com aquilo que Gilles Deleuze vislumbrou, há já quase 20 anos, como a emergência de uma nova organização social: as “sociedades de controle”, um modo de administrar nossas vidas que está substituindo os antiquados mecanismos da sociedade industrial. A vigilância, o confinamento e as pequenas punições cotidianas que vigoravam nas instituições típicas dos séculos XIX e XX, tais como a escola, a fábrica e a prisão, já não são mais necessários para nos transformarmos em “corpos dóceis e úteis”, para fazer de todos nós subjetividades compatíveis com os ritmos do mundo atual.
São bem mais eficazes as novas formas de “assujeitamento”, estas novas modalidades que nos amarram aos circuitos integrados do mundo contemporâneo, pois agora estamos todos “livremente” conectados ao Orkut, ao e-mail, ao celular, ao GPS, aos cartões de crédito e aos programas de fidelidade empresarial. E, aparentemente, o fazemos com prazer e com cotidiana devoção, o fazemos porque queremos.
Essas transformações implicam, sem dúvida, uma muito bem-vinda liberação dos velhos mecanismos de “ortopedia social”, como diria Michel Foucault, que massacraram cotidianamente os corpos das sociedades modernas para adaptá-los a seus ritmos e, assim, alimentar os mecanismos do mundo industrial. Mas eu acredito que deveríamos nos perguntar o que estamos fazendo agora com essas liberdades que conseguimos conquistar, e com esse “tempo livre” que supostamente desfrutamos.
Olhar Virtual: Democratização é uma das palavras de ordem da Internet. Poderíamos ver essa “espetacularização” como auto-reconhecimento e inclusão social nas classes mais baixas?
Não parece haver dúvidas de que, para ser alguém hoje, é preciso ter acesso à rede mundial de computadores e fazer parte das maravilhas da Web 2.0. No entanto, eu acredito que convém desconfiar dessa “democratização” do espaço midiático. Pois apesar da veloz expansão dessas práticas, e em que pese a euforia que costuma envolver todas estas novidades, os dados conspiram contra as estimativas mais otimistas quanto ao “acesso universal” ou à “inclusão digital”. Tanto a quantidade absoluta como a distribuição geográfica dos usuários da internet indica que ainda se trata de uns poucos privilegiados. Longe de abranger a totalidade da população mundial como um harmonioso conjunto homogêneo e universal, é apenas uma porção da classe média e alta da população mundial que marca o ritmo desta “revolução” da Web 2.0. Um grupo humano distribuído pelos diversos países do nosso planeta globalizado que, embora não constitua em absoluto a maioria numérica, exerce uma influência muito vigorosa na fisionomia da cultura global. Para isso, conta com o apoio da mídia em escala planetária, bem como do mercado que valoriza seus integrantes ao defini-los como consumidores. E é precisamente esse grupo que tem liderado as metamorfoses do que significa ser alguém ao longo da nossa história recente, e essa definição ainda continua muito longe de ter sido “democratizada”, tanto no Brasil, em particular, como no mundo, em geral.
Olhar Virtual: Você faz alguma previsão sobre as conseqüências dessa tendência de a intimidade se tornar pública?
Sobre o futuro nada posso dizer, infeliz ou felizmente, apenas que está aberto e a nós pertence. Apesar de todas as forças que levam a acreditar que perdemos o poder de construir a história, eu acredito que o que irá acontecer nos próximos anos é, para bem ou para mal, fruto das nossas decisões e, portanto, incumbe à nossa responsabilidade como sujeitos históricos.