Olho no Olho

Etanol: herói ou vilão?

Taysa Coelho e Thor Weglinski


Representantes brasileiros na Conferência sobre Mudanças Climáticas, realizada em Copenhague, neste mês, tentaram firmar o etanol como fonte de combustível renovável. O Brasil tornou-se referência na produção do álcool como biocombustível, por sua tecnologia na área. O etanol supre hoje metade da frota de carros leves no Brasil e 95% dos automóveis comercializados anualmente funcionam tanto com etanol quando com gasolina

Esse tipo de combustível é produzido no Brasil a partir da cana-de-açúcar e, quando queimado, produz menos gás carbônico em relação à gasolina. No entanto, a utilização da fonte pode gerar problemas econômicos, sociais e ambientais: uso de grandes terras para produção afeta o plantio de outros vegetais, o que pode encarecer esses alimentos; necessidade de novos desmatamentos para ampliar as áreas de plantação e utilização de mão de obra escrava e infantil.

Professora Elba Bom
Coordenadora da pós-graduação em Bioquímica do Instituto de Química (IQ/UFRJ)

“O etanol vai continuar como principal combustível líquido brasileiro, o que eu acho bom, mas temos que alcançar um desenvolvimento tecnológico que desmate pouco e produza muito.”

“O uso do etanol como combustível veicular é positivo, pois é bem seguro do ponto de vista ambiental. O gás carbônico produzido com a queima é reciclado para a produção de mais biomassa, o que significa o não-acúmulo na atmosfera. O diesel de petróleo é muito mais poluente, muito perigoso e carrega muito dióxido de enxofre. Enquanto combustível líquido, o etanol é o único quando falamos de carro, pois a tecnologia de produção do butanol está num estágio pouco evoluído e o biodiesel tem um custo de produção muito alto. O etanol tem outras utilidades: na medicina, por ser um antisséptico e também  eficiente na formulação de medicamentos. O etanol pode ser componente de bebidas, o que é perigoso, pois álcool e bebida formam uma combinação perigosa.

Os problemas resultantes da produção de etanol são uma realidade. Sobre o trabalho infantil na lavoura de cana-de-açúcar, a legislação que trata do assunto está cada vez mais rigorosa. Além disso, as crianças eram utilizadas no corte manual da cana e, atualmente, em algumas regiões nacionais, o corte manual está sendo substituído pelo corte mecânico, diminuindo o emprego de boias-frias e mão de obra infantil. Esta talvez esteja presente nas regiões onde a coleta mecanizada não foi implementada. O desmatamento para plantio de novas áreas de cana-de-açúcar é um impacto grande para o meio ambiente, pois afeta a disponibilidade de água. Quando o álcool é produzido a partir da cana, são gerados palha e bagaço, que podem ser utilizados para a produção do etanol de biomassa de segunda geração. Assim, as fronteiras agrícolas não precisariam ser expandidas, o que pode ser um bom caminho para a sustentabilidade. Se as áreas para produção pecuária são aumentadas, ocorre desmatamento, mas esse fato não está vinculado apenas com a expansão da cana.

Atualmente, no Brasil, existem 325 unidades de produção de etanol. A maior parte dessa matéria-prima também produz açúcar. A produtividade da indústria da cana vem crescendo anualmente 4% nos últimos 29 anos. Nesse tempo, a tecnologia da produção de etanol tem sido aprimorada.  São constantes os melhoramentos genéticos, o uso de inoculantes agrícolas, pouco uso de pesticida, pouca agressão ao meio ambiente, além de muita informação científica, tecnológica e cultural. O conjunto desses fatores contribuiu para o crescimento anual da indústria da cana e para que o Brasil se tornasse referência na produção do álcool. O etanol vai continuar como principal combustível líquido brasileiro, o que eu acho bom, mas temos que alcançar um desenvolvimento tecnológico que desmate pouco e produza muito. Pelo conhecimento e tecnologia que o Brasil tem sobre a cana-de-açúcar, acho positivo que a produção de etanol pela cana continue.

Além do petróleo e do etanol, o país utiliza muito a energia hidrelétrica. Acho que o Brasil deveria diversificar sua matriz energética. O país é muito grande, e devemos ter alternativas energéticas mais coerentes com suas características geográficas, muito diversificadas. Para que o álcool produzido em São Paulo seja transportado para o interior de Tocantins se gasta muito combustível para transportar combustível.”

Alexandre d’Avignon
Pesquisador do Centro de Estudos Integrados sobre o Meio Ambiente e Mudanças Climáticas e professor-colaborador do Programa de Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento do Instituto de Economia da UFRJ

“O Brasil desenvolveu muito, nós exportamos esta tecnologia, mas mais que isso: desenvolvemos um método que tem, vocacionalmente, uma relação com o nosso país.” 

“Não há bioetanol para o mundo consumir 89 bilhões de barris por dia, como a gasolina. No caso brasileiro o etanol é o mais interessante possível porque a planta escolhida foi uma de alto nível de eficiência, a cana-de-açúcar. Não originária do Brasil, foi aprimorada pela antiga Copersucar (Cooperativa de Produtores de Cana-de-açúcar, Açúcar e Álcool do Estado de São Paulo), em trabalhos de 15, 20 anos, em que se chegou a uma variedade enorme de quantidade de sacarose. Assim, obteve-se uma cana em que se precisa de uma unidade de energia para produzir oito – já o milho, por exemplo, necessita de uma unidade de energia para produzir 1,3 unidade.

Capaz de transformar a energia solar através da fotossíntese em um combustível que pode ser queimado similarmente ao combustível fóssil, a cana-de-açúcar certamente é o veículo mais interessante. Quando falamos de etanol isso inclui cana, mandioca, beterraba, macroalga, entre outros. A planta possui certa quantidade de sacarose, que é esmagada através de um determinado processo bioquímico e, então, se realiza uma fermentação para gerar o álcool. Esse processo físico e bioquímico em que se amassa e extrai o caldo, e depois se fermenta, está sendo estudado de forma bastante interessante porque há uma eficiência de produção muito boa, mas pode ser ainda melhor se pensarmos na segunda geração de biocombustíveis. Estamos falando  da hidrólise enzimática,  procedimento em que uma enzima consegue quebrar as fibras de qualquer vegetal e gerar o caldo, que pode ser fermentado,  formando o álcool. Apesar de ainda ser muito caro, faria com que se dobrasse a produção, porque, no caso da cana, se usaria o bagaço, extraindo caldo da celulose que não seria aproveitada. Houve um Estudo de Segurança Energética realizado recentemente pela Coppe, como uma tentativa de fazer alguns números. No caso da cana-de-açúcar, propriamente dita, houve uma descoberta de que, como se tem uma planta C3 – que tem a característica específica de maior concentração de gás carbônico e possui uma proteção  contra a variação de temperatura –, ela não transpira, não perde líquido e ao mesmo tempo é capaz de absorver com maior intensidade o CO2 e crescer com rapidez – é que mesmo com mudanças climáticas nos próximos 20, 30 anos, há a possibilidade significativa na produção de etanol.

Estamos diante de um momento tecnológico bastante promissor. O Brasil desenvolveu muito, nós exportamos esta tecnologia, mas mais que isso: desenvolvemos um método que tem, vocacionalmente, uma relação com o nosso país. Por quê? Porque é um país com grande insolação, com terras férteis. Obviamente que o problema relacionado à mão de obra tem duas facetas. Primeiro que ele emprega. No primeiro momento empregou muito mal: deu trabalho não contínuo a boias-frias, ou seja, se tinha um emprego temporário específico sem carteira assinada. Era uma tarefa extremamente de pouca qualidade, já que as pessoas inalam a cinza da queima da palha e a colheita da cana nessas condições é muito complicada. Entretanto, a relação de trabalho melhorou muito ao longo dos anos. Como é uma atividade de importância significativa, foi legalizada. O setor evoluiu muito nesse sentido e acabou gerando empregabilidade de quase um milhão de pessoas. Claro, continua sendo um emprego temporário, mas que, se bem-feito, pode gerar uma relação de trabalho bastante razoável. Tem um lado positivo empregar muita gente, mas também há o ponto negativo, de ser um trabalho extenuante, que pode comprometer a saúde. Entretanto, começa a ocorrer uma revolução tecnológica. Em São Paulo, maior produtor nacional de cana, por exemplo, há leis que já proíbem a queima da palha da cana até datas determinadas.

O Brasil é um celeiro de produções diversas. Temos que pensar com muito cuidado e cautela sobre os deslocamentos, o que seriam áreas necessárias no futuro para a ampliação, por exemplo, da cultura alimentar e tudo mais.  O setor produtor de etanol diz que, mesmo se ampliando 110 mil hectares para plantar cana, isso não comprometeria a região destinada à cultura alimentar, porque há muito mais que isso, algo em torno de 440 milhões de hectares para esse destino. Ou seja, a convivência com a cana seria possível. Podemos lembrar que ela também pode conviver com outras culturas, como as leguminosas, por exemplo. Hoje não há mais necessidade de se realizar a rotação de cultura, por haver tecnologia capaz de recuperar o solo, como a fixação de nitrogênio, o que é positivo inclusive para a mudança climática, pois não permite que este vá para a atmosfera. Também é muito positivo o fato de que a antiga forma de produção de etanol – precarizada, com problemas em relação ao consumo de bagaço, que era excessivo, e por isso devia ser queimado – começou a mudar. Houve sofisticação dentro do setor e este está muito mais voltado para um sistema energético integrado. Além de tecnologias para fazer com que o solo se recupere mais rápido, por exemplo, acaba gerando a possibilidade de produção de energia em cima de resíduos. Um deles é o bagaço, outro é o vinhoto, que passa a ser, quando tratado, um insumo para a própria terra.

Produzir álcool é interessante, mas deve ser feito com cuidado: avaliar os impactos ambientais, ter cautela em relação à segurança alimentar, com percepção clara que deve gerar emprego – quando se acaba com a queimada da cana, diminuem-se em 60% os empregos; seria necessário qualificar as pessoas para operarem os equipamentos de corte mecanicamente. Então, quando se fala de etanol, deve-se pensar na questão como um todo, para pensar numa possibilidade de reforma agrária, por exemplo, em que há condições de se fornecer a essa população técnicas mais modernas para o plantio; que eles forneçam a cana e o capital ainda continue concentrado na indústria, produzindo álcool da mesma forma. O etanol pode ser uma opção para o Brasil? Pode, mas deve ser feito com cautela, essencialmente em relação a emprego, meio ambiente, segurança alimentar e energética. Se tivermos que fazer qualquer tipo de expansão, preservemos o bioma, a exemplo do ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, que proibiu o cultivo de cana próximo ao Pantanal, o que é extremamente pertinente. Não se pode ameaçar um bioma específico do Brasil com esse tipo de plantio. Se houver produção de cana em área degradada, também se deve exigir dos produtores que recuperem a reserva legal, ou seja, percentual da fauna/flora nativas que deve ser mantido. O álcool deve ser visto como um vetor virtuoso apropriado ao desenvolvimento, e não de curto prazo para ganho de capital.”    

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