Olho no Olho

América Latina se arma: pra quê?

Diogo Cunha e Taysa Coelho


O dia da independência brasileira costuma ser marcado por paradas militares ao ritmo das bandas das corporações, executando o hino nacional. Neste ano, entretanto, o que mais chamou a atenção da mídia foi o de um anúncio do presidente Lula junto ao presidente francês Nicolas Sarkozi: a compra bilionária de caças, helicópteros e submarinos produzidos na França pelo governo brasileiro.

O acontecimento evidenciou algo que já vinha ocorrendo em países vizinhos: a intensificação do processo de investimento em defesa. A criação, articulada pelo Brasil, do Núcleo Militar Integrado de Defesa da América do Sul, e os gastos de mais de 50 bilhões de dólares dos países da América do Sul em material bélico ano passado, fazem o jornal francês Le Monde falar em uma corrida armamentista na América Latina.

Para compreender os motivos pelos quais o Brasil e as demais nações americanas investem, neste momento, em suas Forças Armadas e para entender as conseqüências político-econômicas desses investimentos, o “Olhar Virtual” entrevistou o historiador e pesquisador da UFRJ, Daniel Santiago Chavez, e o economista Luis Carlos Delorme Prado, do Instituto de Economia da UFRJ.

Daniel Santiago Chaves
Pesquisador do Laboratório de Estudos do Tempo Presente, da UFRJ, mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Comparada e um dos autores do livro Bolívia – passos da revolução.

“Há muito se ouve que a America do Sul é um continente pacífico. Isso, no entanto, é uma inteira bobagem. Analisando os quadros, individualmente, percebe-se que o Brasil possui os casos de violência no Rio de Janeiro; a Colômbia encontra-se há décadas em uma guerrilha urbana; a Argentina apresenta problemas entre os agricultores e o governo; a Bolívia quase rachou no final do ano passado; o Equador passou por uma série de convulsões sociais; ou seja, a América Latina não é um continente tranquilo, como costumam dizer.

Não se acredita, porém, que haja um risco de conflito entre os países sul-americanos justamente pela possibilidade sempre iminente desse atrito. Mesmo que Venezuela e Colômbia vivam entre xingamentos, beliscões e mordidas, Hugo Chávez não é bobo de assumir um conflito. Afinal, há muito interesse econômico em jogo.

Em relação ao caso brasileiro, em minha opinião, os gastos com armas significam, da forma mais simples e direta possível, a defesa das riquezas nacionais. Somos uma nação cujo litoral é vasto, navegável, rico, repleto de recursos energéticos e biodiversidade. Não à toa a Quarta Frota, a divisão da Marinha dos Estados Unidos responsável por operações no Atlântico Sul foi reativada, logo depois da descoberta do pré-sal.

Não se quer construir bomba-atômica no Brasil, não há desejo de ataque. Nosso país é dócil e está baseado na diplomacia. Existe aí, aliás, um ponto crítico interessante: a relação direta de Chávez, Evo Morales e Rafael Correa com as suas massas. Seria providencial que a lição desta comunicação entre governo, chancelaria e população fosse importada para cá. Vulnebilizaria muito menos o processo se o governo lançasse uma nota no jornal, fosse, em cadeia nacional, explicar as novas aquisições, sua importância e o porquê de mantermos boas relações com os vizinhos, em uma linguagem que todos pudessem compreender. É previsível que grande parte da população fique perdida nos discursos da grande imprensa.

Não é feio o Brasil comprar armas, afinal, a droga que alimenta o tráfico do Rio de Janeiro vem da Bolívia e da África, sai e entra por nossas fronteiras. O monitoramento de divisas é tão importante quanto o investimento em questões internas. Invariavelmente, os gastos em política externa, em questão de segurança, têm que passar pelo submarino, pela transferência de tecnologia, tudo isso é mais que fundamental.

Enfim, não é necessário se falar em corrida armamentista em nosso continente. É provável que este seja é um processo que, progressivamente, vá avançando e se alinhando. Entretanto, não há, também, expectativa de que em 10 anos resolvamos todos os problemas de unidade sul-americana. É um direito legítimo de todas as nações que desejam se desenvolver ter seus próprios armamentos. Na realidade, a América Latina demorou a se armar. Devemos dar mais valor ao que acontece na América do Sul e no Brasil, pois é um continente muito interessante. É um lugar muito próspero, rico, agradável, onde não existem grandes desastres naturais, com uma biodiversidade riquíssima. Deveríamos ser mais otimistas e largar o complexo de vira-lata. Claro que é importantíssimo investir em outras questões também deficientes, mas a grande dúvida que fica é saber o que esses opositores e grandes críticos fariam se estivessem no poder.“



Luiz Carlos Delorme Prado
Economista do Instituto de Economia - UFRJ

“O Brasil está criando condições para que sua capacidade de defesa seja proporcional a sua expressão econômica e política. No momento atual, com maior presença diplomática e política na esfera internacional e, ainda, maiores interesses econômicos, considero arriscado não investir em defesa. Entre as grandes economias do mundo, o Brasil está entre os países que têm menor gasto de defesa com relação ao PIB. Nesse sentido, na medida em que a economia brasileira cresce, é natural que o dispêndio em defesa também cresça. Como parte desse dispêndio implica transferência de tecnologia, muito para uso militar, mas também para aplicações civis, esse aumento de gastos provavelmente terá efeitos positivos em outros setores da economia, até porque a fronteira entre tecnologia militar e civil é tênue.

Alguns dos principais avanços tecnológicos contemporâneos foram originalmente desenvolvidos para fins militares, mas têm grande aplicação civil, como por exemplo, a internet. As chamadas tecnologias de uso dual (militar e civil) são de grande importância para manter o Brasil na fronteira em pesquisa aplicada e desenvolvimento tecnológico em alguns setores fundamentais para o desenvolvimento.

Para os países vizinhos, os investimentos brasileiros em alta tecnologia podem afetá-los indiretamente, na medida em que algumas de suas empresas possam fazer parte de uma cadeia de fornecimento para essa indústria. Estes serão, também, potenciais clientes para produtos da indústria brasileira de defesa.

Há, porém, um senão; em todos os países democráticos, a sociedade decide, segundo suas prioridades, qual é a parte do orçamento nacional que será gasto com investimentos de defesa. Isso não ocorre no Brasil.”