Foi no domingo, 28 de junho, que a democracia latino-americana se viu mais uma vez ameaçada pelo braço da repressão. O golpe militar que prendeu e exilou Manuel Zelaya, ex-presidente de Honduras, e conduziu ao cargo o então chefe do Congresso, Roberto Micheletti, colocou o país da América Central em destaque no cenário mundial e reacendeu a discussão acerca da fragilidade das instituições democráticas na região.
A reação foi imediata: Hugo Chávez, presidente da Venezuela vítima de uma tentativa de golpe em 2002, manifestou apoio a Zelaya. Outros chefes de Estado da América Latina, entre eles o presidente Luís Inácio Lula da Silva, também se mostraram preocupados com a situação hondurenha. A Organização dos Estados Americanos (OEA) repudiou o golpe militar e, depois de uma sessão convocada em caráter de emergência, suspendeu Honduras. Também a Organização das Nações Unidas (ONU) condenou a prisão de Zelaya e pediu sua restituição ao antigo cargo.
O golpe militar aconteceu como reação ao plebiscito, a ser realizado no próprio dia 28, no qual a população decidiria ou não pela convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte em 2010, cujo objetivo principal seria a elaboração de uma nova Constituição para Honduras. Entre outras coisas, a nova Carta Magna permitiria a terceira candidatura de Zelaya à Presidência do país e ampliaria a democracia participativa do povo hondurenho.
Mas que outros motivos podem explicar a atual situação política de Honduras? A atuação dos militares hondurenhos abre precedentes para novos golpes na América Latina? A pressão internacional para que Zelaya seja reempossado pode surtir efeito? Para responder a essas e outras questões, o Olhar Virtual conversou com Franklin Trein, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), e Roberto Leher, professor da Faculdade de Educação (FE) e 1º vice-presidente da Seção Sindical de Docentes da UFRJ (Adufrj), que, na última semana, organizou uma moção de apoio ao povo hondurenho. Confira!
“No meu entender a única novidade nos fatos ocorridos recentemente em Honduras é, até agora, a aparente não-participação direta do governo dos Estados Unidos, que, ao não atribuir legitimidade aos militares golpistas e declarar que considera Manuel Zelaya ainda o presidente do país, rompe com uma tradição de intervenção nos assuntos internos hondurenhos que começou no final do século XIX. Em outras palavras, há mais de um século os capitais norte-americanos, liderados pela então United Fruit Co., se apossaram de enormes extensões de terra, monopolizaram a produção de frutas, tomaram conta dos transportes ferroviários, da navegação de cabotagem e de longo curso, ocuparam os portos, e por fim governaram o país impondo governos ditatoriais, militares ou civis, promovendo eleições sempre fraudadas, dando golpes para destituir governos que deixavam de ser serviçais. As Forças Armadas norte-americanas e agentes civis dos Estados Unidos agiram diretamente em território de Honduras ou treinaram e apoiaram militares e civis hondurenhos na prática de assassinatos, torturas, desaparecimentos, expulsão do país de todo aquele que se opusesse aos seus interesses. Foi assim durante décadas e principalmente no período em que forças revolucionárias lutavam para derrubar a ditadura de Somoza na vizinha Nicarágua. Perdida a Nicarágua para os Sandinistas, Honduras, que já cumpria um papel importante, se tornou o principal centro de irradiação das operações político-militares dos Estados Unidos na América Central e no Caribe, onde os seus interesses econômicos são defendidos por todos os meios e, quando necessário, com intervenção militar direta.
O presidente Manuel Zelaya, que assumiu a presidência de Honduras em 27 de janeiro de 2006, foi eleito com o apoio de seu partido, o Partido Liberal, e de outras agremiações de centro e centro-direita. O fato de portar o nome Zelaya, que lembra o movimento dos camponeses liderados por Lorenzo Zelaya, assassinado em 1965, talvez tenha contribuído para que Manuel Zelaya, pouco a pouco, começasse a olhar para o povo sofrido de seu país. O diálogo com o presidente Chávez e com outros líderes mais à esquerda na América Latina certamente desagradou a classe dominante hondurenha, um grupo social muito reduzido – 230 proprietários detêm 75% das terras agricultáveis –, sempre intimamente ligado às Forças Armadas e às Forças de Segurança nacionais.
O fato novo, neste momento, é a declaração do presidente Obama (presidente dos EUA) de que não reconhece o governo que se instalou em Tegucigalpa. Isto, no entanto, não é sinônimo de que os Estados Unidos, através de seus agentes tradicionais, tenham deixado de intervir na região e não estejam envolvidos em mais um golpe contra a frágil democracia hondurenha.
Não vejo hipótese de o presidente Zelaya voltar ao poder por simples pressão da comunidade internacional. Qualquer solução, que não seja a permanência dos golpistas no poder, terá que ser negociada.
Talvez o melhor desfecho de toda esta crise venha a ser o desmascaramento dos verdadeiros interesses, econômicos e políticos, por trás do golpe. Assim, enquanto o presidente Obama ocupar a Casa Branca, com o apoio de lideranças progressistas na América Latina e também de outras regiões, as forças políticas mais à esquerda em Honduras poderão ter espaço para ganhar alguma coesão social e política, que permita, no futuro próximo, dar ao país um destino de mais justiça, liberdade e desenvolvimento.
Honduras, um país pobre, saqueado todos os dias ao longo de sua história, permanentemente desrespeitado em sua soberania, com seus pouco menos de seis milhões de habitantes, tem um déficit de alimentos, de habitação, de escolas, de saneamento e uma dívida pública que fazem dele portador de um dos mais baixos índices de desenvolvimento humano de todo o Continente.”
“Todo golpe militar é um duro golpe na débil democracia latino-americana, uma democracia que está baseada na separação radical das esferas política e econômica. Toda tentativa de alteração da ordem econômica abortada por golpes é, nesse sentido, um severo golpe contra a democracia. Não creio que o golpe militar em Honduras abra precedente de novos golpes em curto prazo, mas em médio e longo sim. Não podemos nos esquecer de que este golpe não é um raio em céu azul, pois antes houve tentativas de golpes na Venezuela, contra Chávez, e na Bolívia, contra Morales. Enquanto as contradições da crise e do padrão de acumulação puderem ser manejadas pelo social-liberalismo, Obama dificilmente apoiará abertamente qualquer intento golpista. Mas caso a crise leve de roldão a popularidade dos governos social-liberais (como Lula da Silva, Tabaré Vásquez, Bachelet, Kirchner, entre outros) e, ainda, caso os países da Aliança Bolivariana das Américas (ALBA) — Venezuela e Bolívia, especialmente — aprofundem as transformações antimercantis, todas as possibilidades estarão abertas. Não é ocioso lembrar que a Crise de 1929 conduziu ao fascismo e à Segunda Guerra Mundial. Saídas pela direita e com a força não podem ser descartadas.
A situação em Honduras não é, entretanto, uma resposta da direita ao movimento esquerdista verificado em alguns países da América Latina nos últimos anos. Os atores que impulsionaram o golpe e a natureza do conflito corroboram a leitura de que se trata de um conflito intraburguês. A esquerda socialista hondurenha é pequena e sua representação parlamentar é diminuta. Não se trata de um confronto direita e esquerda no sentido forte da palavra, mas de um confronto que mostra que os limites para as reformas dentro da ordem estão cada vez mais estreitos, exigindo estratégias que avancem para reformas contra a (e fora da) ordem, visto que as frações burguesas dominantes não estão dispostas a ceder nem um milímetro. O afastamento dos setores dominantes do governo de Zelaya passou a assumir um caráter beligerante após a aprovação da elevação modesta do salário mínimo.
A repressão está duríssima, lideranças estão sendo presas, não há liberdade de imprensa com as corporações no controle das mesmas. Preocupa-nos o antecedente de um golpe, no momento em que o processo de crise do capitalismo mostra toda a sua profundidade. Em suma, temos compromisso com a democracia na América Latina e no mundo, e não podemos nos silenciar diante de um acontecimento tão grave.
Precisamos dar visibilidade ao acontecimento, enfrentar as inverdades dos meios de comunicação que insistem em associar o golpe a um suposto levante de Zelaya em prol de um novo mandato, sustentando a legitimidade de uma aproximação do país com o projeto da ALBA, caso seja essa a vontade popular. É crucial que os movimentos possam defender o direito a plebiscitos democráticos e à democracia participativa, para que as reformas possam seguir avançando contra a mercantilização de todas as esferas da vida e, não menos importante, que os movimentos acompanhem a integridade física de cada militante social hondurenho, denunciando veementemente prisões e perseguições. É importante repudiar a quebra do princípio constitucional de que as forças armadas não podem se imiscuir nos conflitos políticos internos dos países. Os movimentos podem ter um importante protagonismo na exigência de que o governo Obama e a OEA, mais do que declarações abstratas, empreendam ações efetivas contra os golpistas.”