Edição 232 02 de dezembro de 2008
Marcelino era um pescador catarinense que cuidava de pássaros e vivia em harmonia com a natureza. De origem simples, o jovem cafuzo vê seu destino mudar quando conhece Eva, governanta de um senador da República. Seduzido pelos apelos sexuais de Eva, Marcelino acaba se envolvendo também em um perigoso jogo político que tem por fim último fortalecer as bases do Fascismo no Brasil dos anos 1940.
Esse é o enredo principal de Marcelino, oitavo romance de Godofredo de Oliveira Neto, professor do departamento de Letras Vernáculas da Faculdade de Letras (FL) da UFRJ. Com lançamento previsto para as 19 horas desta terça-feira (2), na Livraria Argumento de Copacabana, o livro é uma re-escritura de Marcelino Nanmbra, o manumisso, romance publicado por Godofredo, em 2000.
Apesar de tratar da mesma história e ter o mesmo núcleo de personagens, a nova obra traz cenas, descrições e passagens inéditas. Além disso, Godofredo de Oliveira Neto modificou a forma do texto, tornando a leitura mais acessível e verticalizando os personagens.
Em entrevista ao Olhar Virtual, o professor comenta as temáticas principais abordadas no livro Marcelino e explica os motivos que o levaram a reescrever a obra. Confira.
Olhar Virtual: O livro é composto de dicotomias muito claras: razão e emoção, natureza e cidade, negro e branco. Essa estruturação em torno de ambigüidades foi intencional?
Não. Isso foi acontecendo naturalmente. Talvez por conta da dicotomia que se encontrava na própria política da época. Os anos 1940 se caracterizavam por uma grande hesitação do governo de Getúlio diante da escolha de apoiar as potências do Eixo ou os Aliados.
Olhar Virtual: Por que abordar o período dos últimos anos do primeiro governo de Getúlio?
Porque é um período que explica um pouco o Brasil de hoje. É uma época em que se pode criar um herói representante da raça brasileira, um herói com todos os defeitos. Marcelino é um homem comum, que se deixa seduzir pelas coisas carnais e pelo poder. O início dos anos 1940 traz uma facilidade de traçar o perfil de um personagem que tem todas as contradições que as pessoas têm. Ali, essas contradições estão muito vivas por conta da guerra. É um período que me lembra um pouco a Ditadura Militar, época que eu vivi.
Olhar Virtual: Analisando um pouco mais a fundo o personagem central da trama, percebe-se que ele lembra o bom selvagem. O senhor teve influência de outros autores da Literatura para compor esse personagem?
Eu acho que o Marcelino é uma espécie de Peri (personagem do livro O Guarani, de José de Alencar). Só que ele é um Peri do século XX. Ele encarna também um Cruz e Sousa (poeta simbolista) dos mares. Marcelino tem um toque de ingenuidade; é negro; vem para o Rio de Janeiro, achando que vai brilhar na cidade, mas não dá certo. Ele é um herói romântico que se deixa influenciar pelo pecado. Ele se deixa corromper pela civilização na qual está vivendo.
Olhar Virtual: Em um determinado ponto da narrativa, o cafuzo Marcelino é influenciado a participar de um plano arquitetado por pessoas da elite ligadas ao Governo de Getúlio. Reside aí uma crítica racial?
Sim. Ele é uma pessoa simples e é cogitado para participar de um atentado contra um oficial norte-americano. Esse atentado quer dar a impressão ao governo estadunidense que é a população mais pobre do país que está contra os EUA e contra a presença norte-americana no Brasil. Marcelino está sendo usado.
Olhar Virtual: Esse livro é uma re-escritura do livro Marcelino Nanmbra, o manumisso, lançado em 2000. O que levou o senhor a reescrever uma obra quase dez anos depois de ela ser publicada?
Por solicitação de jovens colegas da área de Cinema, dei início à roteirização do meu romance Marcelino Nanmbra, o manumisso. Logo percebi, no entanto, que o viés literário foi se impondo e, ao optar por uma formatação diferente, eu estava reescrevendo, aos poucos, um novo romance, com o dobro de páginas, com novas cenas, passagens, descrições e com uma verticalização mais explícita dos personagens.
Olhar Virtual: O enredo continua o mesmo. Houve, no entanto, alguma alteração na forma da narrativa?
Houve, sim. Durante muito tempo, o estilo da narrativa foi considerado, pelos críticos literários, mais importante do que os personagens e a própria história. Aqui mesmo na Faculdade de Letras, chega-se a dizer que o enredo não interessa, pois o que importa mesmo é a forma. Acho que isso foi verdadeiro e necessário por muito tempo. Mas, com o tempo, a sociedade foi se distanciando da Literatura. Tenho a impressão que ela virou as costas para a Literatura. Parece-me que agora, no final da primeira década do século XXI, estamos vivendo um ‘pré-modernista’. A primeira versão do livro era supramodernista; agora, ele é pré-modernista. A forma mudou. A leitura do texto ficou mais acessível, há mais travessões.
Olhar Virtual: O senhor acha que a crítica pode encarar essa mudança da forma como uma concessão ao mercado?
Acho que uma comparação dessa nova obra com o romance publicado em 2000 pode levar a crítica a pensar que houve uma adequação ao mercado. Mas eu estou levando em consideração a sociedade. Não estou fazendo concessões ao mercado. Eu espero que seja entendido que a proposta de reestrutura do meu romance é consciente. Eu estou fazendo uma autofagia, devorando a mim mesmo.
Olhar Virtual: Como o senhor espera que seja o impacto do livro no cenário literário nacional?
Queria que o Marcelino fosse interpretado como um “Cruz e Sousa dos mares”. Queria que as pessoas entendessem e gostasse desse personagem, que ficassem ora com pena, ora com raiva da ingenuidade dele. O que todo escritor quer mesmo é que os leitores gostem da obra.