Edição 209 24 de junho de 2008
Tecnicamente, a abolição da escravatura completou 120 anos em 2008, mas, em pleno século XXI, o trabalho escravo ainda é um mal que assola uma parte da sociedade brasileira. Alguns integrantes do Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo (GPTEC/ UFRJ) lançaram, no início de junho, o livro Trabalho escravo contemporâneo no Brasil: contribuições críticas para a sua análise e denúncia, que visa abordar esta temática ignorada por uma boa parte da sociedade. O livro foi organizado por Gelba Cavalcante de Cerqueira, Ricardo Rezende Figueira, Adonia Antunes Prado, Célia Maria Leite Costa, pesquisadores do grupo, coordenado pelo professor Ricardo Rezende. Em entrevista ao Olhar Virtual, Sônia Benevides, uma das pesquisadoras do GPTEC, falou um pouco mais sobre o livro e sobre a temática.
Olhar Virtual: Como surgiu a idéia de organizar Trabalho escravo contemporâneo no Brasil: contribuições críticas para a sua análise e denúncia?
Desde que planejamos e realizamos o Seminário Internacional sobre Trabalho escravo por dívida, em novembro de 2005, já tínhamos a intenção de produzir uma obra comum escrita pelos diversos atores sociais deste drama vergonhoso que é a escravização de seres humanos no século XXI.
Olhar Virtual: Qual a importância de organizar um livro em grupo?
Diversos olhares de diferentes lugares e posições sociais sempre enriquecem qualquer debate científico e contribuem para formar conceitos, ampliar horizontes, formular novas atitudes, influenciar cidadãos e movimentos por demandas sociais, culturais e políticas mais justas.
Olhar Virtual: Como surgiu o grupo de pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo? Qual a importância deste grupo dentro do universo acadêmico?
Depois do professor Ricardo Rezende Figueira ter vivido por mais de duas décadas no sul do Pará, onde testemunhou e lutou contra esta situação quase inacreditável de escravidão por dívida, veio para retomar seus estudos acadêmicos e descobriu que muitos aqui ignoravam totalmente esta questão. Entre os amigos que fez sempre falou do assunto e acabou reunindo um grupo de voluntários para organizar os documentos que havia trazido. Foi assim que a professora Gelba Cavalcante, como professora aposentada da Escola de Serviço Social da UFRJ, abraçou também a causa. Foi feito um projeto de pesquisa para UFRJ e encaminhado para a Fundação Ford, que o considerou um bom projeto de direitos humanos.
Olhar Virtual: Qual a importância de abordar essa temática em uma sociedade que acredita que a escravidão foi abolida em 1888?
Mostrar que esta questão não desapareceu infelizmente no Brasil nem no mundo globalizado. Aparece disfarçada de trabalho informal, de super-exploração, de trabalho em condições degradantes, mas especialmente no trabalho escravo por dívida, que estudamos mais especificamente.
Olhar Virtual: Como funciona atualmente a prática do trabalho escravo?
Os casos estudados aqui são geralmente casos que envolvem trabalhadores rurais, analfabetos, desempregados, de regiões especialmente pobres, levados por falsas promessas para trabalhar longe do seu município, para uma determinada empreita – limpeza de terreno, desmatamento, colheita – e no fim do serviço descobre que nada ou quase nada vai receber. Tudo está devendo, desde a passagem, o local do serviço, o que comeu ou consumiu, os instrumentos de trabalho até a lona da barraca do acampamento onde dormia.
Olhar Virtual: Quando falamos de trabalho escravo na atualidade, qual a maior deficiência do Brasil: as leis relacionadas ao assunto ou a fiscalização?
A questão não está propriamente na falta de leis punitivas ao trabalho escravo, mas na aplicação desta legislação. Os processos são demorados, as vítimas desconhecem seus direitos, têm vergonha de admitir que foram escravizadas. Trabalho escravo dá lucro e vários políticos, magistrados, empresários de renome nacional e empresas multinacionais já foram flagrados usando trabalhadores escravos. O Ministério do Trabalho vem fiscalizando e libertando trabalhadores de Norte a Sul e tem publicado um cadastro das empresas envolvidas com o trabalho escravo.
Esta lista está disponível na internet com a finalidade de impedir que eles recebam qualquer tipo de crédito oficial, para puni-los no que mais pesa - o bolso.
http://www.mte.gov.br/trab_escravo/cadastro_trab_escravo.asp.
Olhar Virtual: Como pode ainda existir sistemas de trabalho escravo em pleno Século XXI?
Em todos os continentes, enquanto der lucro e houver uma população vulnerável ao aliciamento ou ao seqüestro, a escravização continua. O pretexto mais comum para o trabalho escravo é a dívida. O trabalhador pode ser um imigrante estrangeiro em situação ilegal no país ou alguém do próprio país que veio de longe.
Olhar Virtual: Antes de 1888, os negros eram o perfil para que se fosse escravo. Ao longo da história sempre foi assim? Atualmente, existe um perfil traçado para o trabalho escravo?
O escravo é sempre o outro, o estranho. E o outro pode ser outro, em sua diferença: a cor, a religião, a etnia etc. No passado era comum a justificativa de indenização como resultado de guerra. Ao vencedor, o vencido devia pagar os custos da guerra e o fazia pela escravização de seu povo. A durabilidade da escravidão podia ser por um tempo definido, como em Israel ou em Roma. Houve outra forma de escravização, por um tempo indeterminado, que passava de uma geração para a seguinte, como nas Américas em relação aos negros.
Olhar Virtual: Quais as formas de trabalho escravo existentes? Diferentes formas de exploração têm diferentes tipos de pena?
A escravidão contemporânea está presente nos setores mais diferentes de produção: abertura de fazenda, produção de etanol, carvoaria ou em setores de produção urbana ou do sexo.
Olhar Virtual: Se você tivesse que fazer uma propaganda do seu livro, como a faria?
O livro apresenta um painel diversificado e atual de discussão sobre o tema, no qual estão presentes os mais amplos setores sociais: a academia, o estado, o poder judiciário e a promotoria, organizações da sociedade civil e as chamadas vítimas.
Olhar Virtual: Como este livro se diferencia dos demais que abordam a mesma temática?
Ainda são raras as publicações sobre a escravidão e mais raras ainda são publicações com uma rede tão extensa de autores que conhecem profundamente o tema, como este livro.