Edição 270 06 de outubro de 2009
No livro Comunicação e Diferença: uma filosofia de guerra para uso dos homens comuns, o professor da Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ Marcio Tavares D’Amaral alerta para o que as novas tecnologias e os paradigmas impostos pelo desejo da eficácia podem causar à humanidade. Poeta e filósofo, Tavares D´Amaral admite estar em busca dos 40 justos, aqueles que, segundo a tradição judaica, salvarão aquilo que há de mais rico no planeta: as diversidades e pluralidade culturais. O livro, lançado em 2004 pela Editora UFRJ, torna-se ainda mais atual, à medida que se processam as inovações tecnológicas.
Olhar Virtual: Como surgiu a ideia do livro?
Marcio D´Amaral: Esta publicação iria se chamar A Arte da Guerra: uma filosofia para o uso de homens comuns, porém, já há uma obra homônima e mais que bimilenar de Sun Tzu. Além disso, fazia-se necessária a palavra “comunicação” no título. Eu tinha o intuito de que este fosse meu livro-síntese, um resumo dos meus estudos anteriores. Entretanto, dois anos após sua realização, mudei a minha linha de pesquisa muito radicalmente e tudo que tenho feito de lá para cá não está neste livro. Deste modo, ele, a rigor, não cumpriu a função de condensar todos os meus estudos.
Este é um trabalho que tem em vista o fato de que na cultura atual – da eficácia tecnológica e da simplificação devido à ordem de consumo – as diversidades do mundo e as diferenças das pessoas, dos povos, das culturas estão ameaçadas. Esta é a ideia diagnóstica do livro: as multiplicidades estão ameaçadas. Por facilitar o manejo tecnológico, o regime da unificação pede simplificação e a redução da complexidade poderia ser, nesta ótica, um fato bom. No entanto, seria necessário que o meu olho fosse o da globalização, o que não é. Tenho ciência de que este é um processo irreversível, mas não precisaria ser feito exatamente da forma como está sendo executado. Outros métodos protótipos são possíveis.
Olhar Virtual: Qual a importância da multiplicidade e da alteridade para a sociedade?
Marcio D´Amaral: Você usou a boa palavra que é a alteridade. Naturalmente, as diversidades serão eliminadas pelo fato de o excesso ser prejudicial à eficiência. Então, quando é dito que o processo da globalização funciona apenas para uma determinada fração da humanidade e não para o resto, significa que os benefícios não chegam a, aproximadamente, três bilhões de pessoas. E estas estão realmente excluídas do sistema da vida, da habitação do mundo, da cultura. Tal exclusão do outro, necessária para estabelecer relações de eficácia de produção para consumo, inclusive de si, de subjetividades – o consumo simbólico – não apenas de bens inseridos, foi o que chamei no livro de Princípio do Mal. E este, na cultura contemporânea, formula-se da seguinte maneira: o outro pode perecer. Isso significa que, toda a alteridade, na medida em que seja um estorvo para o bom funcionamento de um planeta determinado pelos métodos tecnológicos voltados para a utilização de um regime de globalização, que esteja fora desta lógica – não, necessariamente, se opondo a isto –, pode desaparecer sem que seja uma grande perda.
Este princípio possui, infelizmente, inúmeros exemplos: as fotografias de Biafra – em que aparecem crianças esqueléticas e famintas com suas mães e moscas em cima – causaram um impacto muito grande, mas ninguém se moveu; assim com na guerra entre os tutsis e hutus, em Ruanda, em que o Ocidente simplesmente não apenas não se mexeu como se desmobilizou, com a retirada da ONU da região.
Olhar Virtual: Em que sentido o senhor quer dizer que o mundo corre risco de morte?
Marcio D´Amaral: Não é nenhum catastrofismo, fim do mundo ou algo parecido. Porém, há um horizonte do fim das dessemelhanças, daquilo que é um pouco caótico na vida. Eu analisei a cultura contemporânea, identifiquei este “risco” e “perigo” – palavras que utilizo bastante no livro – da extinção das multiplicidades – o que chamei de “a morte do mundo” –, e diante disso propus uma guerra. Guerra esta de contraposição, uma fricção, como corpos de guerreiros se combatendo. Diferentemente das batalhas como inçamos, em que um precisa ganhar e o outro perder – o que, portanto, quer dizer que um tem que matar o outro e aí as variedades se reduzem, porque um sai de cena –, esta é amorosa. O que proponho em Comunicação e Diferença é uma disputa em que se luta pelo empate, para que as disparidades cresçam, mas ao mesmo tempo não à custa da exclusão de algum hipotético inimigo, que seria o que hoje se chama de pós-moderno.
Olhar Virtual: Quem o senhor acredita que, lendo seu livro, pode salvar o mundo?
Marcio D´Amaral: Na tradição judaica há uma ideia muito bonita de que em cada geração existem 40 justos que sustentam o mundo, e que este não acaba devido a suas existências. Vamos dizer, parodiando um pouco este belo costume, que estou procurando os 40 justos.
Olhar Virtual: E entre quem o senhor os vê?
Marcio D´Amaral: Certamente não entre aqueles que se demitiram da função do pensamento crítico, tenham eles qualquer profissão nominal: filósofos, sociólogos, psicólogos sociais, economistas, o que for. Estes dificilmente estarão entre os 40, por terem se transformado em um modelo de conhecimento adequado à eficácia tecnológica, e que, portanto, é um discurso de acompanhamento do padrão dominante, que pode mudar de uma época para outra.
Quem talvez possa vir a ser são os filósofos que se encontram em uma situação de extremo desconforto porque insistem em fazer a pergunta anciã da filosofia: “O que é isto?” Quem a realiza, questiona qual a essência disso, qual sua natureza própria e verdadeira, indo em direção contrária à da eficiência. Ou seja, os filósofos, poetas, cientistas sociais que tenham o olho posto na alteridade e que precisam desta para funcionar, e que não são, portanto, reprodutores de um modelo já dado de eficiência.
Em quem, de fato, eu ponho todas as minhas esperanças são os jovens, seja de idade ou de espírito. Por isso, inclusive, depois de 31 anos dando aulas na pós-graduação, onde os alunos já chegam feitos, formados, voltei às salas da graduação. Após um grande desencanto, cheguei à conclusão de que minha turma são as pessoas de 17, 18 anos. Com essas eu ainda posso fazer algo, podemos realizar juntos, e o que está dito sob a forma “livro” poderá, quem sabe, ser executado sob a forma “vida”. Desde 2006, quando voltei a ensinar os graduandos, tenho tido uma experiência de muita intensidade, alegria, emoção; e são essas pessoas que, no fundo, eu espero que recolham esta frágil flor que estou oferecendo e façam, com ela, um jardim.
Olhar Virtual: Como sentimentos como sofrimento, compaixão, fraternidade e gentileza são abordados no seu livro? E qual sua importância para a humanidade?
Marcio D´Amaral: Estas são palavras que acabaram surgindo a partir de ideias e intuições que eu vinha tendo. Quando utilizei sofrimento, foi relativo ao mundo sentir a proximidade de seu fim, e nós não estarmos fora dele. Dizer isso parece redundante, mas não o é, pelo fato de os paradigmas de ser, dizer, fazer, pensar, que nós estamos construindo nos últimos séculos, serem o de “nós” e “ele”, ou seja: nós olhamos o planeta como meros espectadores, e não como parte dele. Então, no momento em que se pode constatar que “ele” sofre a possibilidade de sucumbir, pela perda das suas multiplicidades, “nós” temos a escolha de permanecermos de fora e assistirmos ou percebermos que sempre estivemos dentro. Logo, sofrer junto com o risco e o perigo de sua morte foi o que denominei de compaixão. A palavra “paixão” vem do latim passione, que significa sofrer; logo, compaixão é sofrer junto.
Ao pensar nas divisas da Revolução Francesa, notei que pela liberdade e pela igualdade já haviam sido feitas revoluções, tais como a própria Francesa e a Russa, respectivamente. No entanto, em nome da fraternidade nunca houve revolta alguma. Isto se dá devido ao fato de esta ser exatamente o sentimento de pertencermos todos à mesma dimensão horizontal; quer dizer, os irmãos são todos da mesma geração. Ao estarmos todos unidos, a humanidade inteira irmã, queremos a fraternidade das diferenças. E agindo, portanto, no interior do mundo, na compaixão deste sofrimento da possibilidade de sua morte, a mover-se na alteridade de todos os irmãos, não segundo a lei, mas pelo desejo de fazer diferente – o que chamei de guerrilhas da multiplicidade.
E, finalmente, a gentileza. Eu estava refletindo em como são ditos os tópicos fora dos paradigmas consagrados da Filosofia Clássica Moderna, da Ciência Moderna e Contemporânea, que apresentam certos padrões, que possibilitam dizer certas questões e impossibilitam declarar outras. Como será possível viver, falar e agir nesta dimensão fraterna das multiplicidades, na ordem do sofrimento e da compaixão, sem que se interrompam os outros dizendo “Aquilo que você disse é falso, quem diz a verdade sou eu, que sei”? E denominei então de gentileza esta intuição de que todas as disciplinas, todos os saberes, todas as práticas discursivas que nós usamos, filosofia, ciências, artes, religiões, são radicalmente incompletas e não possuem, portanto, o direito de dizer a qualquer outra que estas estão erradas. Uma necessita da outra e é a isso, em termos epistemológicos, que chamamos de transdisciplinaridade: um regime em que as falas dos discursos se entrecruzam, se agenciam, se fecundam.
Olhar Virtual: O senhor acredita que pode salvar o mundo?
Marcio D´Amaral: Eu tenho certeza de que não posso salvar o mundo, porém há uma enorme diferença entre tentar ou não. Não vou resgatá-lo, tenho consciência disso, mas no caminho de ir tentando e não ir conseguindo – o que quer dizer, eu com as minhas turmas, na sala 126 – muito não teria acontecido. E diversos fatos positivos continuam ocorrendo, que não salvam o mundo, mas mudam ao menos o nosso entorno. Se nós conseguirmos salvar o nosso mundo, até onde nossos braços alcançam, já valeu a tentativa.