Edição 148 01 de março de 2007
“O panorama que ali se desfruta é de uma beleza encantadora. Como remete à pequena praia, eleva-se um penhasco em cujo topo sobranceia o vetusto convento com sua bela igrejinha de estilo colonial. A brisa marítima sopra continuamente, ouvindo-se o farfalhar dos coqueiros na praia e o escachoar das ondas que vêm quebrar-se aos pés do penhasco”. Quem poderia dizer que essa descrição se refere à Ilha do Fundão de séculos atrás? Mais precisamente, à Ilha do Bom Jesus, uma das nove que aterradas formaram a cidade universitária.
A Ilha do Bom Jesus já teve ilustres visitantes, desde os membros da Família Real até o presidente da República Washington Luís. A Igreja do Bom Jesus da Coluna, construída no início do século XVIII pelos franciscanos e que durante anos ditou a vida social da ilha, mesmo tombada, em 1964, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), não deixou de ser vítima do abandono, assim como muitos outros belos monumentos históricos do país.
A área onde a igreja se encontra pertence ao Exército, que através da Fundação Cultual do Exército (Funceb) buscou uma parceria com a Escola de Belas Artes da UFRJ (EBA) para promoverem a restauração da edificação e de sua imaginária. O projeto de restauração já tem dez anos, mas entraves financeiros não permitiram sua execução na íntegra. Com a posse de Ângela Luz ao cargo de diretora da EBA, a parceria foi retomada e o restauro foi colocado em prática definitivamente com três etapas: a civil, responsável pelo restauro da edificação; a restauração da imaginária e o curso de auxiliar de restauração em madeira, ambos ocorrendo paralelamente no Forte de Copacabana.
Restauração da Igreja do Bom Jesus da Coluna
Muito trabalho e concentração é o que se vê ao chegar na Igreja do Bom Jesus da Coluna, além das notáveis melhorias conseguidas desde o início da restauração, em janeiro. Segundo o mestre de obras, Francisco de Souza, 80% da igreja estava danificada e hoje a obra já está bem adiantada. O telhado, que foi considerado um dos maiores desafios da parte civil, já está recuperado e conta agora com um lençol de alumínio que evita novas infiltrações. “Trabalho há vinte anos em restauração. Quanto pior estiver o estado daquilo que vou restaurar, mas eu tenho prazer em trabalhar. E aqui não foi diferente”, revelou Francisco.
Para que essa evolução fosse possível, foi fundamental o apoio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Segundo Ivanhoé Rocha, coronel do Exército e representante da Funceb, “o apoio do BNDES preencheu quase que a totalidade do que a restauração exigia. O Ministério da Cultura aprovou a verba de 1,37 milhão de reais, dos quais 1,307 milhão foram financiados pelo BNDES, graças à intervenção do professor Carlos Lessa (ex-reitor da UFRJ), grande incentivador da obra. Ainda tivemos o apoio da Usiminas e a colaboração de algumas pessoas físicas”.
“A obra da igreja mobiliza cerca de 30 pessoas, entre restauradores e construtores civis”, contabilizou Eduardo Ferran, engenheiro residente da obra. A equipe de restauradores, que trabalha na igreja é composta por profissionais, alguns formados pela EBA, e também por pessoas que adquiriram experiência própria com o tempo. Como é o caso de Márcia Regadas. “Sempre trabalhei com artesanato e, aos poucos, fui aprendendo inúmeras técnicas que possibilitaram meu contato com o restauro”, explicou Márcia.
Toda a obra é fiscalizada pelo IPHAN e as intervenções feitas na edificação exigem aprovação do Instituto, como aconteceu com a porta da igreja que, por ter passado por inúmeras intervenções em sua cor (sendo marrom, prateada), precisou de um minucioso trabalho de prospecção para se encontrar a cor original. “Assim como a pintura da nossa casa, com o tempo, queima, mudando sua tonalidade, a porta da igreja teve sua tonalidade alterada. Para chegar à original, o IPHAN faz uma composição e chega à conclusão de qual cor foi primeiramente utilizada, que no caso da porta foi azul-celeste”, informou o Coronel Sérgio Tinoco, fiscal da obra e integrante da Funceb.
Durante a restauração da igreja, foram feitas algumas descobertas que o abandono encobriu. Como a inscrição, 1703, no portal da igreja, uma das supostas datas de fundação do templo. Um arco, que dava passagem para a nave da igreja, também apareceu com a obra. Debaixo do altar é possível encontrar os restos mortais dos proprietários da Ilha do Bom Jesus, segundo consta no documento redigido pelo Tenente Ladislau Comte, em outubro de 1989, em que Ladislau conta a história da Igreja do Bom Jesus da Coluna. “Junto à urna há um buraco por onde os padres fugiam quando perseguidos. Essa passagem liga a Igreja ao mar, mas hoje está fechada”, revelou Ivanhoé.
Se a obra continuar a transcorrer no ritmo atual, o engenheiro Eduardo acredita que a parte civil ficará pronta em dezembro de 2006.
Imaginária em restauro
Dez imagens da igreja foram levadas para o Forte de Copacabana, por medida de segurança, para serem restauradas. Além da restauração, coordenada por Paula Rocha, ex-aluna da EBA, o Forte abriga o curso de extensão de Auxiliar de Restauração em Madeira, coordenado pelo professor da EBA, Carlos Terra.
“O Exército propôs que a escola participasse da restauração, oferecendo um curso de extensão, ou seja, aberto à comunidade, do qual também fariam parte alguns militares. O Exército tem vários museus e, assim, ele passaria a ter pessoas capazes de auxiliar na conservação das obras de arte”, contou Terra. A parceria também previu a participação de estudantes bolsistas da Escola de Belas Artes. Dessa forma o curso é composto por oito soldados, cinco bolsistas e cerca de dezessete pessoas da comunidade que, desde maio aprendem a teoria e a prática da restauração em madeira. Em dezembro, estarão aptos a serem auxiliares de restaurador.
Os alunos do curso de extensão não puderam interferir na imaginária da igreja, devido ao seu precário estado de conservação. Eles aprendem as técnicas a partir de peças que a coordenadora Paula Rocha leva de seu acervo próprio. “Assim eles podem vivenciar plenamente o processo de restauro, enquanto acompanham a restauração da imaginária da Igreja do Bom Jesus da Coluna”, explicou Paula. Com a evolução do restauro, os bolsistas da EBA estão começando a intervir nas imagens da igreja. “Mas isso só é possível porque estamos em um estágio do processo em que o material usado, apesar de caro, é reversível, como a folha de ouro para o douramento. Se houver um erro, não danificará a peça”, complementou a coordenadora.
Toda a preocupação com a imaginária não é exagero. “Quando vi o estado de conservação das imagens, era notório que elas sofreram ataques violentíssimos de cupim que, ao longo do tempo, formaram galerias, espaços vazios nas peças. O que sobrou foi a policromia, a tinta das imagens, já que o cupim não come tinta. Quando tocávamos nas peças, abriam-se buracos”, contou Paula. Essas galerias foram uma das maiores preocupações dos restauradores e motivo do atraso da restauração, já que o preenchimento através da injeção de produtos é uma das etapas mais complicadas. Outra constatação feita pelos restauradores é que as imagens sofreram muitas camadas de pintura. Hoje já é possível ver a policromia da época, mas foram encontradas cerca de cinco camadas de pintura. “Isso ocasionava uma camada grossa que prejudicava a sutileza do entalhe. O restauro recuperou o valor da riqueza do entalhe que não era perceptível no seu todo”, explicou Paula.
O Coronel Edison Pinto, responsável pelo Forte de Copacabana, acredita que a realização do curso no Forte é uma oportunidade ímpar, não só para o Exército como instituição, mas também para os homens do Exército. “Nossos soldados, que participam do curso, levam todo o conhecimento adquirido aos demais soldados, conscientizando e levando mais preocupação com a preservação de nosso patrimônio”, completou o coronel. Para Paula Rocha, “os militares contribuem com o seu forte poder de concentração, proveniente da disciplina militar”. Concentração e disciplina que não faltam ao Sargento Edivandro da Cruz, cuja participação na restauração foi fundamental ao conseguir juntar as partes dos membros inferiores ao tronco do Bom Jesus da Coluna. “Ninguém entra para o Exército para ser restaurador. Eu entrei para ser combatente. Mas sempre gostei de arte, por isso vim parar aqui e fico feliz por ter criado uma solução aprovada pelo IPHAN”.
Exemplos como Edivandro acendem a questão da necessidade do auxiliar de restauro que, segundo Paula, é uma mão-de-obra escassa. “Eu tenho empresa de restauração, há 10 anos, e sei da dificuldade de encontrar esse profissional. Acabo trabalhando com restauradores especializados ou estagiários que vêm crus para que eu os treine”, revelou. Carlos Terra divide com Paula a opinião. “Todo mundo quer ser o cacique, ninguém quer ser o índio. Mas o índio é de extrema necessidade para a tribo, assim como o auxiliar é de extrema importância para a restauração”, comparou Terra.
Importância da graduação em Restauração
Se a imaginária da Igreja do Bom Jesus da Coluna hoje se encontra em um estado digno de sua importância artística, é porque, durante o processo de restauração, profissionais da área estiveram e ainda estão presentes na execução do restauro, provando seu importante papel no panorama histórico, artístico e cultural e insuflando o discurso dos defensores de um curso de graduação em Restauração.
Para Ângela Luz, diretora da Escola de Belas Artes, um curso de graduação em Restauração é muito necessário, “porque a própria UFRJ tem patrimônio histórico-cultural de grande valor, mas não consegue a conservação e a restauração de suas peças, pois esse é um trabalho muito oneroso”, defendeu Ângela. Ela acredita que o curso suprir o mercado, principalmente do Rio de Janeiro, com essa mão-de-obra, como ajudará a conservar o patrimônio da universidade. Além disso, Ângela defende a criação de um curso de graduação em Restauro na UFRJ porque se preocupa com os cursos de graduação nessa área que estão surgindo com professores sem a qualificação necessária: “uma restauração em mãos não bem formadas e não criteriosas pode resultar em um dano patrimonial irreversível”, completou a diretora.
Carlos Terra, que também defende a implementação dessa graduação, revelou que a EBA está estudando essa possibilidade. Mas deixou claro que existem entraves, “precisamos, em primeiro lugar, de dinheiro, porque a restauração depende de materiais caros e mão-de-obra especializada, que por ser escassa aqui no Rio, deve ser buscada em outras cidades como São Paulo e Minas Gerais, onde estão os grandes centros de restauração. Além disso, precisamos de espaço”, frisou Terra. O professor contou que se pretende criar um núcleo de restauração na EBA e que o reitor, Aloísio Teixeira, após conhecer o Centro de Papel da escola, ficou impressionado e propôs dar espaço e verbas para a implantação do núcleo.