Edição 218 26 de agosto de 2008
Desde o ano passado, a Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) destina vagas para indígenas em alguns de seus cursos. Neste ano já foi publicado o edital específico do concurso de Vestibular para indígenas que queiram ingressar em cursos de Graduação no período letivo de 2009. O número de vagas aumentou para 20, distribuídas entre os cursos de Direito, Enfermagem, Nutrição, Farmácia e Agronomia. Em 2003, o deputado federal Carlos Abicalil (PT-MT), protocolou na Câmara um projeto de lei que visa à criação da Fundação Universidade Federal Autônoma dos Povos Indígenas, instituição de ensino superior exclusiva aos indígenas que teria sede em Cuiabá e seria vinculada ao Ministério da Educação.
Segundo a Fundação Nacional do Índio (Funai), existem hoje no Brasil cerca de 460 mil índios, distribuídos entre 225 sociedades indígenas, que compõem cerca de 0,25% da população brasileira. Só no Mato Grosso vivem aproximadamente 28 mil indígenas pertencentes a 38 etnias.
Para esclarecer as questões envolvidas na inserção do índio na universidade e as implicações disso tanto para a cultura indígena quanto para a sociedade, o Olhar Virtual conversou com a professora do Departamento de Fundamentos de Educação da Faculdade de Educação da UFRJ e autora do livro Organizações multiculturais: logística na corporação globalizada, Ana Canen, e com o professor da Escola de Serviço Social e membro do corpo editorial da revista francesa Multitudes, Giuseppe Cocco.
Acho que a questão da inserção dos indígenas nas universidades passa por um tema mais amplo que é o das políticas afirmativas — aquelas que pretendem dar maior oportunidade para os grupos marginalizados. Essas medidas integram o movimento que adota a perspectiva de inclusão de grupos historicamente excluídos dos benefícios da sociedade. O que ocorre é que as políticas afirmativas possuem dois lados. O lado positivo é permitirem que haja maior diversidade cultural nos campi das universidades. Isso significa maior representatividade desses grupos, o que é muito bom. Nós, que adotamos a perspectiva do multiculturalismo, não queremos “universidades brancas” atendendo somente à elite. É importante que a sociedade entenda que a diversidade só nos acrescenta e nos torna melhores. Essas políticas afirmativas, porém, são paliativas; não são o remédio que vai resolver as injustiças. Deve haver maior investimento na educação básica de qualidade com o desenvolvimento de currículos para escolas de nível fundamental e médio que valorizem a cultura indígena. Currículos que promovam um diálogo entre a cultura indígena e a dominante. A política de cotas deve ser encarada como temporária.
Um segundo tipo de medida, que deveria ser implantado junto às políticas de cotas, seria a que visa garantir a permanência desses índios na universidade. A cota não adianta de nada se não houver na universidade o apoio necessário, como políticas públicas que invistam em cursos paralelos para suprir a deficiência do ensino básico, além do investimento em cursos para os professores e bolsas para a alimentação e compra de materiais escolares para o aluno. Isso é ainda mais necessário nos cursos mais caros como Medicina, Engenharia e Direito.
Os investimentos não podem se limitar ao acesso à universidade, mas devem ser também voltados para a permanência do aluno. Caso contrário, o efeito é de maquiagem e o acesso torna-se perverso por não dar a condição de permanência nem a chance para que futuros sujeitos possam competir com igualdade de condições. A valorização da cultura indígena nas escolas e o diálogo entre culturas desde a educação básica são necessários.
Os movimentos indígenas estão se articulando, há demanda por estas vagas na universidade. Com certeza, eles irão considerar este um passo muito positivo, mas as lideranças mais “antenadas” com um quadro maior irão reivindicar outras medidas como a valorização da sua cultura em todos os setores da sociedade e maiores investimentos na educação.
A universidade que recebe os cotistas indígenas deve se conscientizar que a diversidade é uma riqueza para todos. Por isso deveria ser feito um trabalho que favorecesse a diversidade e impedisse que os indígenas tivessem vergonha de sua cultura. Por isso os currículos devem se adaptar e procurar o diálogo com as diferenças, pois não é um favor permitir o ingresso indígena no ensino superior, mas sim um direito do cidadão. Cabe à instituição promover atividades curriculares e extracurriculares que resgatem a auto-estima dos indígenas e valorizem esta cultura, que também é plural. São muitas etnias diferentes. Deve haver incentivo à diversidade cultural que caracteriza nosso país; do contrário, pode provocar um estranhamento nos indígenas que os levem à evasão. O multiculturalismo é uma riqueza para todos. A homogeneização cultural provoca a perda da oportunidade de se formarem pessoas com competência multicultural. O ideal seria que todos os departamentos universitários abrissem essa possibilidade da representação da diversidade cultural.
Eu tenho uma opinião geral sobre a política de cotas como está sendo prevista em nível nacional. Hoje já são algumas dezenas de universidades que tomaram a iniciativa autônoma de se adiantar ao governo e criar políticas próprias de cotas. Isso me parece absolutamente pertinente porque dá conta de várias questões ao mesmo tempo: em primeiro lugar, à democratização do acesso ao ensino superior e, em segundo, à necessidade de lutar contra todas as formas de discriminação, seja cultural ou étnica. Ao mesmo tempo a universidade se abre à entrada da diversidade e riqueza social que caracterizam as diferentes regiões do país.
Para os indígenas, essa iniciativa da UFMT tem grande importância, na medida em que eles vão poder reforçar sua autonomia, se desligando da dependência de um saber “branco”. Estes índios poderão continuar hibridizando sua cultura com a cultura dominante. Assim terão algumas das técnicas das quais precisam e poderão articular esta relação entre o poder e o saber. Ao mesmo tempo, acho que boa parte destes indígenas que vai ingressar na universidade irá sair do âmbito indígena. Isso vai aumentar a riqueza para a sociedade brasileira e para a região do Mato Grosso, torná-la mais dinâmica, misturada, híbrida.Acredito que o contato dos indígenas com o “saber branco” não vai distanciá-los de suas origens e raízes, mas trazer uma riqueza para a cultura dominante através da riqueza da pluralidade e singularidade da cultura indígena. O indígena pode usar o médico, a vacina, estudar e continuar indígena.
As cotas em geral são instrumento fundamental para que a mistura aconteça em todos os níveis e não só nas margens da pobreza, como é freqüente no Brasil. A política de cotas não distancia os alunos universitários cotistas dos não cotistas, as experiências no Brasil demonstram isso. O verdadeiro problema é a exclusão e não as modalidades da integração dentro da integração. Afinal, as cotas são de entrada e não de saída, combatem o racismo e a ideologia meritocrática, falsa, que rege atualmente o acesso à universidade. A meritocracia atual confirma apenas uma estrutura social extremamente hierarquizada. A meritocracia é entendida na nossa sociedade como um ponto de partida, mas o mérito é na realidade um ponto de chegada. Se o mérito é concebido como ponto de partida, ele apenas favorece a reprodução da estrutura hierárquica social que só dá condições aos que já nasceram com elas. O investimento público deve ir no sentido oposto para que o mérito seja uma conquista e não o começo.
A priori, eu diria que os professores não necessitariam de uma orientação especial para lidar com os indígenas. Falar de cotas é falar de democratização, a preparação necessária é o investimento do governo federal para o aumento do número de vagas nas universidades. O que defendo é uma formação mais diversificada, pois não estou convencido de que o vestibular é o método mais eficaz para avaliação. Pelo contrário. O aluno deveria ingressar na universidade em uma grande área e não em uma diretamente específica. Para os indígenas e para todos, seria mais interessante a existência de ciclos básicos por grandes áreas, como pretende o governo no plano da Reforma Universitária. Os ciclos básicos dentro desta nova concepção, criados e diferenciados dentro das grandes áreas do conhecimento, seriam benéficos para o processo de adaptação e formação dos alunos ingressos.