Edição 192 26 de fevereiro de 2008
Em um país onde os estados têm autonomia para tomar as próprias decisões e o voto é facultativo e indireto, o sistema eleitoral não é simples. Nos Estados Unidos, a primeira etapa das eleições presidenciais são as prévias, em que os partidos escolhem seus pré-candidatos através de um processo eleitoral.
Após esta fase, os eleitores elegem os delegados escolhidos pelos partidos para representarem uma chapa no Colégio Eleitoral. Neste caso, os cidadãos votam no delegado que manifestou a intenção de eleger seu candidato. Aquele que receber a maioria dos votos populares no estado fica com os votos dos outros delegados, à exceção de Maine e Nebraska.
Vale mencionar que o delegado é um mero instrumento da vontade do eleitor e corresponde à soma do número de deputados e senadores de cada estado.
No entanto, neste processo, obter a maioria dos votos populares em todo o país não garante a vitória do candidato. Se este perder nos estados mais populosos e, conseqüentemente, com mais delegados, está fora da disputa.
Em 2000, George W. Bush obteve 47,87% dos votos contra 48,38% do democrata Al Gore. Apesar da porcentagem, o republicano foi eleito por ter vencido na Flórida, estado com grande representatividade no Colégio Eleitoral.
Para elucidar o sistema político-eleitoral e discutir as correntes políticas vigentes nos Estados Unidos, o Olhar Virtual conversou com William Gonçalves, professor do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal Fluminense e da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, e com Vitor Izecksohn, professor de História da América da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
“O sistema político dos Estados Unidos inclui a eleição dos deputados na Câmara dos Representantes e do Senado. A primeira é proporcional e distrital, vincula fortemente o deputado às suas bases. A outra é desproporcional ao tamanho da população e não distrital. Cada estado elege dois senadores.
Em relação às eleições presidenciais, o voto é facultativo. As pessoas que desejam votar precisam se inscrever para compor a lista eleitoral. Além disso, a eleição acontece em um dia comum, evidenciando uma intenção de desestimular a participação popular e contribuir para a estabilidade política. Este ano, as prévias estão mobilizando bastante o eleitorado, dadas as características dos candidatos e o próprio julgamento acerca do governo Bush.
Do ponto de vista formal, não há dúvida a respeito do caráter democrático deste processo, se entendermos por democrática a participação do cidadão no processo de escolha do seu governante. O sistema foi pensado e projetado de uma maneira meticulosa para impedir grandes mudanças. Os pais fundadores da república, cientistas políticos e intelectuais tinham muito bem definido o que consideravam ser o melhor para os Estados Unidos.
É muito comum ouvir das pessoas leigas que o modelo ideal de Constituição é a dos norte-americanos por se manter a mesma desde o século XVIII. No entanto, a Constituição da União Federal é muito limitada, com extensão suficiente para manter os estados unidos.
O conjunto de leis que atualiza e incorpora mudanças é a Constituição Estadual, responsável por decidir pela pena de morte, pelo porte de armas, entre outras medidas. É ali que estão definidas questões práticas, que afetam diretamente a vida do cidadão.
No Brasil, a Constituição Federal é muito ampla e não pode ser diminuída pela Constituição Estadual. Há pouco tempo, o governador Sérgio Cabral tentou iniciar um debate alegando ser necessária uma legislação específica para um adequado combate à criminalidade no Rio de Janeiro. Porém, de acordo com as leis federais, isto não é permitido.
Outro ponto importante a ser discutido é o bipartidarismo. As elites políticas nos Estados Unidos entram em consenso, de forma que as críticas de oposição entre os partidos são muito cautelosas. Em determinados contextos, a preocupação com a estabilidade do país se sobrepõe a eventuais divergências políticas.
Os democratas sabiam tanto quanto nós que a acusação feita pelo presidente Bush de que o Iraque dispunha de armas químicas era mentirosa, uma farsa mal urdida. Apesar disso, o partido democrata não fez nenhuma denúncia porque aquilo envolvia interesses do Estado, das empresas norte-americanas, além da imagem do país no exterior. A senhora Hillary Clinton, que hoje diz ser preciso acabar com a guerra do Iraque, naquele momento, votou a favor do conflito.
Os partidos democrata e republicano são muito próximos. Pode-se dizer que as lideranças são extraídas do mesmo círculo sócio-econômico. Divergem por razões religiosas, a respeito do casamento gay, do aborto, mas não divergem em relação à estrutura e ao funcionamento da sociedade norte-americana.
O candidato que propuser uma série de mudanças ficará na intenção, porque tanto na Câmara dos Representantes como no Senado há um conservadorismo muito forte, sustentado na estrutura institucional burocrática do Congresso”.
“O sistema eleitoral, tal como existe hoje, foi estabelecido durante a Convenção Constitucional de 1787. Ele parte da idéia de que os estados são os componentes soberanos, a partir dos quais se dá a eleição presidencial. O processo é arcaico se comparado ao voto proporcional estabelecido no Brasil, mas devemos considerar que ele está em funcionamento há mais de duzentos anos, e que os cidadãos norte-americanos são muito apegados às suas tradições.
Os democratas representam, no momento, uma concepção da nação vista a partir do Estado. Eles são os chamados liberais, conceito que na terminologia local representa a defesa de uma idéia de seguridade social, associada ao funcionamento do mercado. Na mesma terminologia, os republicanos estariam mais ligados ao grande negócio e às tradições protestantes, que pregam a reforma a partir da redenção individual.
Essa ferramenta foi eficiente para a reforma social no passado, incluindo a luta abolicionista, mas carece de agilidade no momento em que temas como o aborto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a criação de um sistema nacional de saúde desafiam as crenças religiosas. O problema é que os republicanos também estão divididos em relação a esses temas, já que o candidato John McCain não encarna o ideário das correntes religiosas mais radicais.
Todo sistema eleitoral tem pontos fracos. A ausência de um calendário unificado é um dos maiores problemas das eleições nos Estados Unidos. Na eleição de 2000, houve corrupção em um estado-chave. No momento, o debate no interior do Partido Democrata versa sobre o poder dos chamados “Super-Delegados”. Estes seriam os representantes dos pequenos condados, com poder de decisão maior do que o daqueles eleitos por grandes centros.
Certamente o sistema eleitoral dos Estados Unidos precisaria de reformas para se tornar mais ágil. No entanto, é pouco provável que transformações ocorram em curto prazo, já que as regras estão em vigor há muito tempo”.