Edição 318 4 de novembro de 2010
Ilustração: João Rezende |
Como uma das mais poderosas formas de expressão da cultura norte-americana, o cinema se tornou um importante veículo nacional e internacional da ideologia patriótica dos Estados Unidos. A fábrica de sonhos é também uma fábrica de estereótipos que servem à reprodução do senso comum, representando de forma caricata tanto os amigos quanto os inimigos da nação.
Filha de imigrantes da antiga União Soviética, a atriz inglesa Helen Mirren, conhecida por interpretar Elizabeth II no filme “A Rainha”, de Stephen Frears, - papel que lhe rendeu o Oscar de melhor atriz em 2007 – declarou recentemente que Hollywood representa russos e ingleses como vilões e raramente instiga o público a pensar de forma diferente.
Segundo João Camillo Penna, professor da Faculdade de Letras da UFRJ, o discurso da atriz, que frequentemente atua em filmes hollywoodianos, é pertinente. No entanto, o aspecto da nacionalidade não seria dominante nas caricaturas da Hollywood atual. “Parece-me que a grande virada política que foi o 11 de setembro de 2001, que na prática colocou o país em uma guerra que não acaba mais, significou em Hollywood uma leva de filmes autorreflexivos que se debruçam sobre as complicações internas do país e sua dificuldade de ser nação”, afirma o docente. Filmes como “O casamento de Rachel”, de Jonathan Demme, ou “Gran Torino”, de Clint Eastwood, são exemplos dessa nova geração.
O cinema como arma político-ideológica
A tradição de Hollywood como veículo da ideologia ianque data provavelmente da Segunda Guerra Mundial, quando o combate norte-americano ao nazifascismo aconteceu no bombardeio de imagens na telona antes mesmo do país enviar seus exércitos aos campos de batalha. Dessa forma, a partir dos anos de 1930, os EUA instauram a “Política da Boa Vizinhança” e utilizam o mercado cinematográfico como meio para a formação de alianças com os países latino-americanos.
“É nesse contexto que Carmen Miranda, uma portuguesa criada no Brasil, vai lançar no mundo uma mistura musical de samba e rumba, produzindo famosas caricaturas latino-americanas e, sobretudo, brasileiras, ao representar indiferentemente o papel de cubana, argentina ou brasileira,” explica João Camillo. “Hollywood reinventa as nacionalidades ao seu bel prazer. Põe a todos falando inglês: desde Moisés até Doutor Jivago, passando pelos árabes de Lawrence da Arábia. Todo mundo devidamente “americanizado”,” acrescenta.
Durante a Guerra Fria, quando ambas as superpotências investiram pesadamente em propaganda, o cinema voltou a servir de estratégia para os EUA expandirem sua influência no mundo. Assim, Hollywood se tornou uma grande máquina de divulgação da identidade americana e dos seus padrões de consumo.
Os inimigos do Estado
Segundo João Camillo, o imaginário cinematográfico hollywoodiano é marcado pela construção da oposição entre amigos e inimigos, ambos igualmente caricatos. Para ele, os estereótipos de nacionalidade de que fala Mirren, e mesmo os que tratam do mundo islâmico, seriam menos graves hoje do que os estereótipos dos ”inimigos” internos dos EUA, representados pelos imigrantes ou os membros das etnias que formam a nação norte-americana.
“Data do cinema mudo a construção do estereótipo do índio apache, nos filmes que retratavam a “resistência” armada dos brancos imigrantes que dizimaram os povos nativos de suas terras com as forças da cavalaria norte-americana. E o estereótipo racista negro aparece bem cedo, num dos maiores filmes norte-americanos de todos os tempos, O nascimento de uma nação (1914-1915) de D.W.Griffith, que narra a fundação do Ku Klux Klan. O Western e sua versão atualizada, o filme policial, um dos gêneros mais populares do cinema e da televisão norte-americanos, são basicamente grandes fábricas de caricaturas do mal, não necessariamente um mal nacional, ou estrangeiro, mas um mal social: o criminoso, o delinqüente, o imigrante, o drogado”, explica Penna.