Edição 204 20 de maio de 2008
Um ano antes de morrer, em 1955, Albert Einstein, um dos mais famosos e relevantes cientistas do século passado, redigiu uma carta ao filósofo alemão Eric Gutkind. Nela, Einstein faz declarações polêmicas, como a de que Deus “não é nada mais que uma expressão e o produto das fraquezas humanas” e a de que a Bíblia, livro norteador de milhões de cristãos em todo o mundo, se resume a “um compêndio de lendas dignas mas primitivas”.
O conteúdo da carta veio à tona na semana passada, quando ela foi leiloada pela casa londrina Bloomsbury e comprada por um colecionador particular que pagou 550 mil libras esterlinas pelo objeto.
Posturas como a de Einstein são muito comuns no meio científico. Recentemente, o biólogo britânico, Richard Dawkins, da Universidade de Oxford, lançou o livro Deus, um delírio. Na obra, muito criticada pelo caráter subjetivo das afirmações contidas ali, Dawkins aponta a irracionalidade de acreditar em Deus e os danos imputados pela crença religiosa à sociedade. Segundo o intelectual, a religião alimenta guerras e fomenta o fanatismo.
Poucos sabem, entretanto, que o ambiente acadêmico-científico não é composto apenas por indivíduos que, a exemplo de Einstein e Dawkins, refutam a existência de qualquer ente sobrenatural. Embora a Ciência pareça um campo pouco frutífero para a crença religiosa, existem inúmeros pesquisadores que, a despeito dos conhecimentos científicos adquiridos, permanecem com sua fé individual.
Márcio D’Amaral é um deles. O professor da Escola de Comunicação foi ateu por 36 anos. Aos 52 anos, recuperou a sua fé. Entrevistado pelo Olhar Virtual, D’Amaral comenta os embates entre conhecimento científico e religião, explica as relações da Ciência e da fé com o Real e pontua a importância da diversidade religiosa na universidade atual.
Olhar Virtual: Na sua opinião, a Ciência desmente a idéia de Deus?
Não. O modo de operar da Ciência atual não permite confirmar ou desmentir a idéia de algo. A ciência constata "realidades" a partir de hipóteses. Até se poderia dizer que, ao contrário, hipóteses científicas, como a do big bang, que afirmam a passagem absolutamente singular de nada a tudo, indicam o lugar que deveria ser ocupado por Deus (não sua idéia, Deus mesmo).
O que me parece decisivo é que, posta na dimensão da eficácia instrumental, hoje, a Ciência não pensa, ela instrumentaliza o "real" tecnologicamente, para uso eficaz. Sobraria a Filosofia para, quem sabe, negar validade à idéia de Deus. Mas a Filosofia está extremamente esvaziada da potência de perguntar pelo ser de algo, nesses tempos pós-modernos.
Olhar Virtual: Como a Pós-modernidade esvaziou a Filosofia?
Desde que Nietzsche "matou" Deus (Nietzsche valia mais do que isso, trata-se de uma má interpretação, que ganhou a boca do povo; vamos deixá-la lá), a filosofia não tem se obrigado a pensar sua realidade. É certo que cientistas importantes, como Hawkins, saem dos seus territórios para se pronunciarem (contra) sobre Deus. Mas então não pensam como cientistas e, por mais qualidade que tenham seus argumentos, não são científicos. Cientistas, mesmo os mais renomados, também têm suas opiniões, que, apesar de brilhantemente expressas, são apenas opiniões.
Olhar Virtual: Fé e ciência são antagônicas? Por quê?
É uma questão de resposta difícil. Se a fé e a Ciência tratassem das mesmas coisas sob os mesmos aspectos e chegassem a conclusões reciprocamente excludentes, teríamos antagonismo e, então, seria o caso de decidir qual das duas conclusões é a boa. Não é óbvio. Mas se considerarmos a possibilidade de fé e Ciência tratarem da mesma coisa (vamos dizer o Real, com maiúscula), sob aspectos diferentes, mesmo conclusões opostas não seriam antagônicas. Poderiam até ser indiferentes uma à outra, mas não mutuamente excludentes: uma não teria acesso ao nível de formulação da outra. Na nossa atualidade, fortemente determinada pela tecnociência, há a tendência a reduzir o Real aos seus aspectos empíricos, verificáveis.
Fica muita coisa importante de fora dessa redução: o amor, a qualidade pessoal e intransferível de uma certa emoção, coisas de ordem qualitativa, que não são de modo nenhum irreais. Pelo contrário, podem determinar muito concretamente uma vida. A ciência tenta então reduzir essas qualidades a quantidades e agenciamentos: o gene da homossexualidade, a predominância de um ou outro hemisfério cerebral para dar conta de certos comportamentos humanos etc. Essa tentativa certamente esbarra em Deus. Então se explica Deus sob a ótica psicanalítica, neurocientífica ou antropológica.
Olhar Virtual: Essas explicações científicas acerca de Deus não são válidas?
Nos seus níveis específicos, essas explicações podem ser eficazes para aquilo a que se propõem. O que sobra, no fim, é algo para ser decidido de maneira mais vital do que a ciência é capaz, algo de que a filosofia deveria se ocupar, mas já vai se desinteressando: se o Real tem uma dimensão só ou é essencialmente múltiplo.
Mas, se no fim, prevalecer a segunda hipótese, a Ciência, com tudo o que vale e faz, terá deixado de ser a senhora do Real. E se a experiência de outra dimensão real, não redutível à razão científica e não irracional, puder ser feita, a Ciência não terá controle sobre essa experiência.
Ora, a experiência da fé pode e é feita por metade da humanidade. A Ciência não pode se opor a essa experiência (como ao amor, ao encantamento produzido pelos últimos Quartetos), porque não se encontra no nível de realidade dessa experiência, não tem experiência dessa realidade. Portanto e volto à questão anterior, não há antagonismo entre fé e Ciência, porque nenhum dos parceiros tem, no seu nível, capacidade para excluir o outro, em outro.
Olhar Virtual: É possível um indivíduo avançar em seus conhecimentos científicos, ou seja, expandir sua visão de mundo tendo como base para isso a Ciência, e manter sua fé religiosa inabalável? De que forma isso pode acontecer? Que fatores subjetivos poderiam estar envolvidos nisso?
Sim, é possível. Seria fácil citar diversos exemplos (estou pensando em Carlos Chagas Filho), mas não seria sério. Creio que o problema se coloca assim: se a experiência científica, feita concretamente por alguém, andar no sentido de reduzir, nesse alguém, a faculdade de imaginar o Real de outros modos que não o científico, então o progresso da ciência irá para a direção da eliminação da experiência religiosa. Passei por isso na minha juventude. Se, ao contrário, a experiência científica (ou filosófica, neste caso tanto faz, é razão x fé) não esterilizar, no indivíduo considerado, o desejo de multiplicidade, de muitos sentidos, de razão e poesia, lógica e infância, tecnologia e amor, então a pessoa que estiver nessa posição pode ser simultaneamente um cientista (ou filósofo, pessoa da razão) e uma pessoa de fé. Fiz essa experiência na maturidade. Na base dessa possibilidade está o mesmo problema dos níveis do Real.
Olhar Virtual: A universidade é laica e é nela, muitas vezes, que o indivíduo acaba por conhecer novas interpretações e reflexões acerca do mundo, afastando-se da sua religião original. Como o senhor avalia a presença da religiosidade no ambiente acadêmico-científico?
Fora das faculdades de Teologia, a universidade de fato se aparelhou para excluir níveis do Real que não sejam assimiláveis pela imaginação científica. De qualquer ângulo que se olhe, isso figura um empobrecimento do espírito. Mas os cientistas, em toda boa-fé, não podem tolerar outros níveis de imaginação do Real. Neste sentido, a universidade atual é tão intolerante quanto a medieval. Só mudou o motivo da intolerância: antes eram os atentados contra Deus, as heresias; agora são os atentados contra a razão, as superstições. Introduzir maior diversidade na universidade atual, inclusive a religiosa, é uma decisão, sobretudo, política e tem como horizonte a liberdade de ser mais do que o paradigma científico designa como humano.
Olhar Virtual: O senhor, particularmente, é adepto de alguma religião ou crença? Caso seja, pode nos contar se, em algum momento, a sua religiosidade atrapalhou ou contribuiu para a sua carreira acadêmica?
Sim, eu sou cristão, de orientação católica. Fui ateu dos 16 aos 52 anos. Nesse período se fez minha carreira acadêmica, de aluno de Graduação a professor titular. Ninguém me discriminou por eu ser ateu. Depois, recuperei a fé e faço dela hoje uma experiência que julgo profunda, diferente da religiosidade infantil que foi a minha no passado, e que, convenhamos, acompanha muita gente pela vida afora.
Essa nova experiência determinou alterações evidentes na minha linha de pesquisa e na orientação dos meus cursos. Ponho hoje, sem nenhum proselitismo, a questão da transcendência na cena intelectual. Meus estudos vão nessa direção: o Mal, a Semelhança, a Transcendência. Como disse um colaborador uma vez, Deus quica na mesa das nossas reuniões de pesquisa como bola de pingue-pongue. Mas não é cruzada, conversão, é um debate alegre e fraterno. Perturbamo-nos reciprocamente, eu e meus colegas não crentes. E quem não quiser não entra na brincadeira. E fazemos, é claro, muitas outras coisas além de discutir esses assuntos. Aliás, “outras coisas” é o que mais fazemos. Confessionalismo acadêmico é insuportável. Mas perdi minha bolsa do CNPq, de pesquisador 1A, depois de 30 anos de colaboração. Foi decorrência academicamente negativa das minhas convicções religiosas? Um pouco persecutório levar-se a sério demais. Mas é impossível?