Edição 203 13 de maio de 2008
Mais um referendo perturba a paz de um presidente latino-americano. Depois de Hugo Chávez ter assistido, no plebiscito de 2 de dezembro de 2007, à derrota das alterações que propôs para a Constituição venezuelana, agora é a vez do boliviano Evo Moralles encarar um referendo de resultado polêmico.
Realizado no último dia 4 de maio, o referendo autônomo promovido pelo departamento de Santa Cruz questionava à população se a região deveria ou não ter autonomia política, administrativa e financeira em relação ao governo central de Moralles. O resultado já era esperado: 85,9% dos habitantes optaram pelo “Sim”, enquanto 14,1% dos eleitores rejeitaram a proposta.
As autoridades de Santa Cruz, responsáveis pela convocação do referendo popular, defendem que a autonomia irá proporcionar a distribuição e a aplicação mais efetivas dos recursos públicos na região. Isso porque, ao se tornar autônomo, o departamento, o mais rico da Bolívia, poderá, entre outras coisas, recolher impostos e administrar a concessão de títulos de propriedade de terras.
Já para Moralles, que considera ilegal o referendo, a autonomia dividirá a Bolívia, país que já perdeu parte de seu território para o Brasil, para o Chile e para o Paraguai. Além disso, existe o temor de que Santa Cruz pare de repassar os recursos para os departamentos menos favorecidos.
Entrevistados pelo Olhar Virtual, os professores Franklin Trein, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), e Cláudio Egler, do Instituto de Geociências (Igeo), comentaram o imbróglio. Trein falou sobre a influência que a autonomia de Santa Cruz pode ter sobre outras regiões da América Latina e destacou os interesses que estão por trás dessa solicitação. Egler ressaltou a importância econômica da região e apontou que as experiências de autonomia regional devem ser discutidas. Confira.
O que Santa Cruz reivindica é autonomia e não separação. Só que é uma autonomia equivalente, para efeitos econômicos e políticos, à separação. Ao agir assim, esse departamento, na verdade, está dividindo, de direito, um país que já está dividido de fato. Santa Cruz é a região mais rica no solo, no subsolo, na cultura, na economia e na sociedade. Em Santa Cruz estão concentrados os bolivianos de origem européia, os descendentes dos colonizadores espanhóis e de tantas outras nacionalidades que vieram fazer fortuna com o trabalho escravo dos índios bolivianos e com as riquezas de suas minas.
O desejo de autonomia de Santa Cruz é antigo e só não foi levado adiante porque, até agora, quem mandava na Bolívia era esse departamento, seja direta ou indiretamente. Isto mudou. Moralles não representa os interesses de Santa Cruz, já que essa região está preocupada somente com o seu bem estar e, se para isto for preciso, está disposta a se associar ainda mais ao capital internacional, o que vem fazendo há muito tempo.
Caso seja reconhecida, a autonomia de Santa Cruz pode influenciar negativamente outras regiões da América Latina, pois abrirá uma discussão sobre o direito de secessão, que não é outra coisa do que os ricos pretendendo se livrar dos pobres. Claro que não completamente, uma vez que os pobres sempre serão admitidos nos ‘territórios liberados’ para vender sua força de trabalho sem o custo de participação na cidadania do novo país.
No meu entender, essa é uma oportunidade para o Brasil ter uma posição positiva, responsável e madura, dizendo a todos que queiram saber que isto não interessa à paz, à segurança e ao desenvolvimento político, social e econômico da região sul-americana. Santa Cruz tem que saber que não terá o apoio e nem o reconhecimento do Brasil como região desvinculada do governo de La Paz. Nós, sul-americanos, ou seremos capazes de, unidos, fazer um projeto de desenvolvimento de todos, includente, com justiça social, com oportunidade para todos e principalmente para aqueles que foram excluídos historicamente, ou seremos eternamente servos dos interesses externos, dos grandes capitais, das burguesias internas associadas aos interesses internacionais, sem compromisso com a superação da miséria, das desigualdades e com a garantia de democracia em nossas sociedades nacionais na América do Sul.
De um modo simplificado, a Bolívia pode ser dividida em duas grandes regiões: o Altiplano, onde está La Paz e a maioria da população indígena, e as Terras Planas (Los Llanos), na fronteira com o Brasil, compreendem desde o Departamento de Pando (Amazônia), passando por Beni, Santa Cruz e chegando até Tarija (Chaco). Nesta área, a população de origem indígena é minoria; existem muitos imigrantes - inclusive brasileiros - que plantam soja; e estão ali as principais jazidas de gás natural (Tarija).
No passado, a principal renda de exportação da Bolívia provinha do estanho, cujas minas encontravam-se no Altiplano. Até então, Santa Cruz estava legada a um segundo plano e suas principais ligações econômicas eram com o Brasil, devido à Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, que partia de São Paulo. Hoje, no entanto, a situação é outra. As principais receitas da Bolívia vêm do gás natural e da soja, e os departamentos do Crescente Boliviano querem aumentar sua parcela nessas receitas.
Quero chamar a atenção para o fato de que Santa Cruz é o departamento que mais contribui atualmente para o PIB boliviano, entretanto a pobreza de sua população e a falta de serviços básicos não são diferentes do restante da Bolívia e, em alguns indicadores, encontra-se em situação muito pior do que a capital La Paz.
Não há dúvida de que a situação na Bolívia é de crise institucional. Não está funcionando a Suprema Corte; o Congresso faz oposição ao Executivo; e a nova Constituição não foi referendada. O momento é delicado, não apenas pela busca de autonomia dos departamentos - que querem se transformar em províncias - mas também pela luta pela auto-determinação das comunidades indígenas, submetidas às elites bolivianas há séculos. A conjunção desses dois movimentos forma um quadro bastante delicado, onde são necessárias negociação e habilidade políticas, para evitar conflitos abertos, que irão afetar diretamente aos mais pobres.
No entanto, toda crise é também um momento de transformação. Existem novas experiências de autonomia regional que merecem ser observadas, como é o caso da Espanha. O direito de autodeterminação das comunidades indígenas é outra reivindicação presente também no Equador, que conseguiu alguns avanços na proposta de um estado plurinacional. A questão está em manter o espaço de negociação entre as forças políticas bolivianas, para não correr o risco de esfacelamento institucional ou de bonapartismo.