Edição 282 05 de janeiro de 2010
Desde o último mês de março, o ministro da Educação Fernando Haddad propõe mudanças no Vestibular. Símbolo do sonhado ingresso em uma universidade pública, o processo seletivo que vigora atualmente recebe diversas críticas, feitas tanto pelo ministro quanto pela comunidade acadêmica em geral, por privilegiar a memorização, dando menor importância ao pensamento crítico e lógico.
Para mudar a situação vigente, a proposta é unificar o concurso das instituições federais e estaduais de ensino que adotassem o novo sistema, que, por sua vez, pretende utilizar o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) como primeira fase de avaliação. Nesse sentido, também o Enem passaria por modificações, apresentando um exame formado por quatro testes, sendo cada um com aproximadamente 50 questões e destinado a uma das seguintes áreas do conhecimento: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, incluindo aqui uma redação, Ciências Humanas e suas Tecnologias, Ciências da Natureza e suas Tecnologias e Matemática e suas Tecnologias.
Além de reformular a grade dos cursos de ensino médio, as mudanças podem proporcionar ao candidato mais mobilidade na escolha da instituição de ensino. Desta forma, um estudante do Rio de Janeiro poderia se matricular em uma universidade de outro estado, caso obtenha nota suficiente para o ingresso, sem precisar sair de seu estado para realização da prova de seleção. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2007 (Pnad/IBGE), de todos os estudantes matriculados no primeiro ano do ensino superior, apenas 0,04% reside a menos de um ano no estado onde estuda — índice inexpressivo quando comparado com o de outros países. Nos Estados Unidos, por exemplo, cerca de 20% dos alunos atravessam fronteiras estaduais para ingressar na universidade escolhida.
Melhorias no processo seletivo para universidades públicas, ou até mesmo o fim do tradicional vestibular, são constantemente pensadas por educadores. Para a Andifes, Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior, a unificação do exame passaria a constituir um importante instrumento de política educacional. Afinal, o novo modelo de prova deve ter foco em habilidades e conteúdos mais relevantes para a constituição do pensamento crítico e, assim, implicaria mudanças fundamentais nas orientações curriculares do ensino médio.
Porém, a unificação dos vestibulares que o MEC sugere também não é aceita com unanimidade. Envolta em polêmica, a proposta arrebanha opiniões favoráveis e contrárias. Para compreender os argumentos de cada posição, o Olhar Virtual conversou com Belkis Valdman, pró-reitora de graduação da UFRJ, e Marcelo Macedo Corrêa e Castro, decano do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH/UFRJ).
É inegável que o atual modelo de Vestibular precisa passar por um processo de mudanças. A proposta de utilizar o Enem como primeira fase de seleção me parece uma medida viável. Obviamente, é preciso reformular o próprio Enem, como tem sido proposto, para que ele seja uma prova mais detalhada. Isso sendo feito, o processo seletivo para ingresso em universidades públicas passará a ter um caráter mais democrático, até mesmo a nível nacional. O panorama de candidatos mudará completamente, já que teremos estudantes de todo o país. Em vez de termos, por exemplo, os cerca de 50 mil inscritos anualmente no vestibular da UFRJ, o número passará a ser da ordem do milhão. Além disso, esse novo processo é interessante, pois retira a necessidade de o aluno passar por um pré-vestibular, o que favorece, sobretudo, os indivíduos carentes que não podem ingressar em um cursinho preparatório.
Acredito que essa proposta pode trazer mudanças também para a reformulação da grade curricular do ensino médio. É preciso que o processo de seleção avalie o conteúdo de todos os anos do antigo segundo grau, favorecendo a elaboração de um raciocínio crítico. O novo modelo de vestibular, sem dúvidas, reforça a necessidade de alterações no atual ensino médio.
Outro ponto fundamental está na mobilidade estudantil — processo importante e comum em muitos países, mas que raramente acontece no Brasil. Cursar uma faculdade em outro estado é uma experiência salutar para o estudante. Além dos conhecimentos oferecidos por seu curso, o aluno adquire um aprendizado inerente à situação de estar em uma região diferente da de sua origem, vivendo culturas diferentes da sua. Essa mobilidade remonta, no entanto, à questão da assistência estudantil, que se faz extremamente necessária, devendo ser pensada. Porém, como a experiência proposta é nova e ainda não dá para saber exatamente como mudará o perfil do estudante da UFRJ, não é possível discutir com precisão sobre o tema.
O que eu não posso afirmar ainda é se essas mudanças poderão ser postas em prática ainda este ano. Isso é uma incógnita. Afinal, estamos falando sobre algo que ainda não está concretizado e cujas proposições precisam ainda passar por maiores discussões.
É preciso esclarecer que qualquer mudança implementada de imediato gera problemas. Historicamente, nós temos no Brasil um ensino que não se prontifica a preparar para a vida, mas sim para o exame vestibular. Portanto, qualquer mudança deve ser pensada e amadurecida. Afinal, há toda uma engrenagem por trás dos nossos mecanismos de ensino.
A indústria da aprovação, formada pelos cursos pré-vestibulares e pela preparação específica em colégios particulares, existe em função desse desvio histórico, em que se enfatiza a preparação para uma prova de ingresso em universidade pública. A questão não está, portanto, no tipo de vestibular. Independentemente da forma como ele seja feito, teremos essa indústria preparatória que, a meu ver, até se favorece com essa possível unificação.
Além disso, dar ao governo federal esse poder de coordenar as formas de ingresso na universidade me parece um engano. Nossas políticas educacionais não são consistentes. E, ainda, o INEP não terá condições de reger sozinho todo o processo, o que implicará a necessidade de fazer licitações e contratar empresas particulares para oferecer auxílio. Seria preciso, então, mexer em um regime sobre o qual as universidades já conseguiram estabelecer um acúmulo histórico importante para elaborar e controlar a seleção.
Por fim, com a proposta de unificação, o MEC sinaliza com a vontade de permitir o ingresso em universidades públicas a um segmento social que hoje é desfavorecido economicamente. Entretanto, na minha opinião, o novo sistema proposto acaba por fechar mais portas. Isso porque teríamos uma primeira fase funcionando como eliminatória.
Porém, antes de qualquer coisa, é preciso observar a história do nosso país. A unificação do vestibular já aconteceu no Brasil, quando, em 1968, o governo promoveu uma reforma no ensino superior. Segundo ela, o vestibular tornava-se unificado regionalmente, podendo ser organizado por fundações especializadas. No Rio de Janeiro, por exemplo, tivemos a Cesgranrio. Porém, nós vimos que a medida não deu certo, tanto que acabou sendo extinta anos depois.
Acredito que as verdadeiras mudanças precisam ser feitas na oferta de educação pública desde o seu nível básico. O problema está na inferioridade do ensino público oferecido hoje, na disparidade deste em relação ao ensino privado. A medida proposta pelo MEC, assim como outras, como o aproveitamento de vagas ociosas, não toca na raiz do problema, que é a deficiência do ensino público de base.