Edição 206 03 de junho de 2008
Com aproximadamente 60% de sua área total dentro do território brasileiro, a Amazônia representa um dos mais complexos e diversificados ecossistemas do planeta. Justamente pela riqueza de sua fauna e flora, a região é visada por países de todo o mundo, que desejam explorar os recursos naturais da floresta. Entretanto, tal disputa ficou acirrada nos últimos meses. Enquanto o presidente Luiz Inácio Lula da Silva defende duramente que o território amazônico brasileiro pertence ao Brasil, outras nações fazem pressão pela internacionalização da Amazônia, medida que transformaria a região em patrimônio mundial.
Se, por um lado, a Amazônia é objeto de desejo de vários países, por outro, continua sendo cenário de degradação ambiental e de conflitos envolvendo a população indígena. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), 1.123 km² de Floresta Amazônica foram desmatados somente no último mês de abril, conforme indicado pelo sistema DETER – Detecção do Desmatamento em Tempo Real. Os estados de Mato Grosso e Roraima são os de maior área devastada, apresentam 794,1 km² e 284,8 km² de degradação florestal. Além disso, a demarcação de reservas indígenas é um fomentador de conflitos na Amazônia, constituindo uma preocupação constante para o governo federal.
Para esclarecer os principais pontos da polêmica envolvendo a Amazônia, o Olhar Virtual conversou com os professores Bertha Koiffmann, do Instituto de Geociências (IGEO/UFRJ), e Carlos Eduardo Young, do Instituto de Economia (IE/UFRJ). Confira a opinião dos especialistas sobre o caso.
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A internacionalização da Amazônia não pode acontecer em hipótese nenhuma. O sistema jurídico de Estados-nação ainda não foi superado. Além disso, já há bastante influência de mercados e agentes globais que não são, de modo nenhum, benéficas para o Brasil e para a região, pois têm estimulado formas predatórias de expansão econômica.
O grande desafio para o Brasil é saber como utilizar o fantástico patrimônio natural da Amazônia sem destruí-lo. Significa implementar um novo modo de produzir, baseado na informação e no conhecimento, com tecnologias avançadas e condizentes com o século XXI. É preciso superar práticas do século XIX ainda hoje predominantes na região, como a queima da madeira para fazer carvão e a destruição da flora e da fauna. Atribuir valor econômico à floresta em pé para que possa competir com as "commodities", organizar cadeias produtivas com produtos da biodiversidade e valorar os serviços ambientais (não só o carbono, vendido por um preço baixíssimo) são medidas essenciais para utilizar os ecossistemas florestais sem destruí-los e para gerar renda e trabalho que melhorem as condições de vida da população.
Embora os conflitos regionais demonstrem que a força dos interesses contraditórios quanto à utilização dos recursos naturais não está sendo devidamente enfrentada, há um esforço considerável na defesa das fronteiras amazônicas, que são imensas. É bastante válido para o Brasil fortalecer as redes de relações econômicas legais e de relações sociais e políticas com os países amazônicos vizinhos, partindo de embriões já existentes nas cidades gêmeas de fronteira.
Em relação à soberania brasileira sobre o território amazônico, é importante estabelecer que o conceito de soberania tem uma face externa — das relações entre Estados e organizações internacionais — e uma face doméstica, referente às condições da sociedade nacional, que legitima o Estado. O ministro Carlos Minc poderá contribuir para a afirmação da soberania brasileira na região na medida em que, juntamente com os demais ministros e com o apoio da nação, conceber e implementar um projeto para o desenvolvimento regional capaz de utilizar sem destruir o patrimônio natural, beneficiando as populações regionais e do país. Isto significa, na prática, o fortalecimento da face doméstica da soberania.
* O pau está comendo — ou melhor, queimando — na Floresta Amazônica. No debate sobre o futuro da floresta, boa parte dos atores insiste em repetir antigas falas, como a necessidade de desmatar para garantir o "progresso" ou negar a realidade dos números do desmatamento. Mas existem idéias novas que podem construir o tão necessário consenso.
A mais importante delas é dar valor à floresta conservada ("em pé") como alternativa ao padrão tradicional de ocupação pelo desmatamento. O conceito é simples: se o valor dos serviços ambientais gerados pela floresta for maior do que o lucro obtido com a extração predatória da madeira e com a pastagem ou cultivo implementados em seu lugar, então, economicamente, seria ilógico desmatar!
Uma conta rápida exemplifica como a incorporação de apenas um desses serviços, a manutenção dos estoques de carbono, torna a conservação florestal economicamente atraente. Para adicionar um boi na Amazônia, queima-se em média 1,5 hectare de floresta, lançando cerca de 180 toneladas de carbono na atmosfera — algo equivalente à emissão anual de duzentos automóveis, rodando mil quilômetros mensais!
O lucro anual que o fazendeiro pode obter com o aumento do rebanho na fronteira amazônica dificilmente ultrapassará R$ 100 por animal, e o rendimento médio está bem abaixo disso. Mas o custo desse carbono emitido para aumentar a pastagem vale, na Bolsa de Clima de Chicago, cerca de US$ 4.800; vale mais ainda no mercado europeu. Resultado, quem está trocando ouro por espelhos não são os povos indígenas, mas a destruição causada pela nossa "marcha do progresso".
Como dar valor à floresta em pé? Pelo pagamento dos serviços ambientais da floresta, conforme propõe o Pacto do Desmatamento Zero. O pacto foi lançado em 2007, após resultado de longa negociação entre ONGs, Ministério do Meio Ambiente e governos estaduais, inclusive o Mato Grosso, do governador Blairo Maggi. Por isso, como já percebeu o ministro Carlos Minc, é a forma mais próxima de atingir consenso sobre como garantir desenvolvimento sustentável da Amazônia. A proposta consiste em combinar o aumento de ações de fiscalização e controle do território com incentivos econômicos para os produtores que conciliem produção com conservação florestal em terras privadas.
Ações positivas
Do lado dos governos, União, Estados e municípios, significa aumentar a capacidade operacional das agências ambientais e de regularização fundiária, por meio do aumento de recursos, materiais e humanos, e incentivar a expansão e melhoria na capacidade de gestão das áreas protegidas, inclusive terras indígenas, sob controle direto do poder público. Do lado do setor privado, o pacto prevê que ações positivas dos proprietários que investem em conservação florestal devam ser remuneradas. Esse é o ponto mais controverso, pois alguns alegam que não se deve premiar alguém por simplesmente respeitar o Código Florestal.
Mas os sucessivos fracassos em tentar conter o desmatamento somente na base da "polícia ambiental" acabaram levando a uma visão mais pragmática, pois o custo social do desmatamento é muito superior ao valor necessário para induzir à conservação da floresta.
Como financiar esse plano? Em primeiro lugar, é fundamental que os gastos com o ambiente recuperem, em termos relativos, a importância que já tiveram. Enquanto o orçamento do governo federal previsto para transporte cresceu mais de quatro vezes entre 2004 e 2007, saltando de R$ 2 bilhões para R$ 8,8 bilhões, os gastos com proteção ambiental ficaram estagnados em torno de R$ 450 milhões. Em termos percentuais, os gastos ambientais caíram de 6,4% das despesas com infra-estrutura em 2004 para míseros 2,3% em 2007. Simplesmente recuperar a participação relativa de 2004 significaria mais R$ 1 bilhão, e, se a meta for voltar ao gasto relativo de 1996/98, outro bilhão de reais deverá ser acrescido.
Existem formas inteligentes de gastar esse dinheiro na Amazônia, e o Programa Áreas Protegidas da Amazônia (ARPA), do próprio governo federal, é um bom exemplo de como a gestão ambiental pode ser incrementada com resultados práticos.
Outra forma de obter recursos é pela venda de produtos e serviços da floresta. As concessões florestais em terras públicas podem garantir outro quinhão significativo de recursos, ao mesmo tempo em que impedem a "privataria" com terras públicas — toda vez que unidades de conservação ou terras indígenas são transformadas em fazendas particulares, mais um pedaço de patrimônio público é dilapidado para aumentar a riqueza privada de alguns.
O resto da sociedade global também deve contribuir para a preservação da Amazônia, sem ferir nossa legitimidade e soberania. O BNDES acaba de anunciar a criação de um fundo nesses moldes — aliás, como já previsto pelo Pacto do Desmatamento Zero, por meio de uma doação do governo norueguês.
Para que a captação seja mais efetiva e atraente a recursos privados, é preciso que tais operações resultem na criação de créditos de carbono, válidos nos mercados de carbono mundiais. Até agora, o governo federal brasileiro tem insistido em que ações que reduzam o desmatamento não possam gerar créditos de carbono e, por isso, acaba penalizando o país, pois bloqueia a principal forma de pagamento pela floresta em pé.
A reversão dessa posição é fundamental para o sucesso dos fundos de desenvolvimento sustentável da Amazônia, como o recém-criado pelo próprio BNDES.
*Artigo publicado na Folha de São Paulo em 1º/6/2008.