Edição 306 3 de agosto de 2010
Ilustração: João Rezende |
Com as tragédias que abalaram os morros do Estado do Rio de Janeiro nos primeiros meses de 2010, a discussão sobre soluções para os problemas da habitação dominou as páginas de jornal e as discussões populares por algumas semanas. Durante o Fórum Urbano Mundial 5, que aconteceu em março deste ano, o ministro das Cidades, Marcio Fortes, anunciou o resultado de estudo da Fundação João Pinheiro sobre o déficit habitacional brasileiro, referente a 2008. Os números indicaram 5,8 milhões de domicílios no país, dos quais 82% localizados nas regiões urbanas.
Como é rotina no noticiário, o assunto perdeu destaque com o passar do tempo. No entanto, com a aproximação das eleições, o debate sobre o tema ganha nova dimensão. O Olhar Virtual conversou com Maria de Fátima Gomes, coordenadora do Núcleo de Pesquisa Favela e Cidadania da Escola de Serviço Social da UFRJ, e Marcelo Lopes de Souza, professor da UFRJ e coordenador do Núcleo de Pesquisas sobre Desenvolvimento Sócio-Espacial (NuPeD), do Departamento de Geografia da UFRJ, para discutir as políticas públicas para a habitação no Rio de Janeiro.
Maria de Fátima Gomes
professora da UFRJ e coordenadora do Núcleo de Pesquisa Favela e Cidadania da Escola de Serviço Social.
As cidades do mundo, em especial as grandes metrópoles, enfrentam o agravamento dos problemas existentes e o surgimento de novas problemáticas. O autor Mike Davis (2006), em seu livro “Planeta Favela”, adverte que as favelas, antes uma realidade dos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, estão se proliferando. Segundo as projeções do autor, o mundo em tempos de economia globalizada e intervenções públicas que não dão conta das sequelas decorrentes do agravamento da questão social, tende a se transformar em uma imensa favela. Nesse contexto, o Brasil se destaca, já que a habitação se coloca como uma das manifestações da questão social decorrente das desigualdades sociais. Segundo os dados da ONU/PNUD, o nosso país tem a terceira pior desigualdade na América Latina e Caribe, fenômeno historicamente persistente, apesar da existência de alguns programas de sociais de transferência de renda. O Rio de Janeiro se destaca entre as cidades brasileiras tanto pela proliferação de favelas quanto pelas péssimas condições de vida e segurança desses espaços de moradia. Dados do Instituto Pereira Passos (IPP) apontam que o Rio tem hoje 1.020 favelas. Destas, apenas 54 foram completamente urbanizadas e 571 são alvo de obras ou remoções. Sendo a questão da habitação tema caro tanto aos movimentos sociais urbanos quanto à mídia, às agendas públicas e às plataformas eleitorais, não foi por acaso que, em março deste ano, o Rio de Janeiro abrigou, de forma simultânea, o Fórum Urbano Mundial (ONU/UM Habitat) e o Fórum Social Urbano.
Durante o Fórum Urbano Mundial, o BID anunciou financiamento para a realização da terceira etapa do Programa Favela-Bairro que, além das novas obras de urbanização, prevê recursos específicos para reduzir a violência nas favelas. Em julho, o prefeito Eduardo Paes divulgou o lançamento do programa Morar Carioca, um ambicioso plano que passará a ser a referência para a urbanização de todas as favelas. O programa pretende oferecer às favelas o mesmo tratamento dado à cidade formal, fixando gabarito, demarcando limites, além de ações referentes ao choque de ordem. Se o Programa Favela-Bairro tem sido questionado por sua incapacidade de reduzir as desigualdades na cidade e pela falta de conservação das obras e continuidade das intervenções, o novo programa, ainda que tenha buscado aprimorá-lo, causa inquietação pela maneira como a violência urbana será enfrentada. Além dessas intervenções, estão previstas, até 2012, as remoções de 123 favelas consideradas em área de risco. A proposta de dinamizar as remoções valeu-se das chuvas de abril no Rio de Janeiro, quando ocorreram deslizamentos em alguns morros da cidade.
As alternativas oferecidas para as famílias têm sido vagas e inconsistentes, ampliando a resistência por parte dos moradores atingidos. Os moradores contestam a prefeitura com relação à definição de áreas de risco, muitas vezes usada como empecilho para os segmentos mais pobres fixarem suas residências, sem se constituir obstáculo para a construção de mansões e condomínios dos setores mais abastados da sociedade. Em algumas favelas verificam-se investimentos oriundos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do Governo Federal em parceria com Estado e Município, com valorização do trabalho social, colocado como requisito para o desenvolvimento de obras de infraestrutura. Tais recursos expressam valores jamais vistos na história do Rio de Janeiro e articulam-se à preparação da cidade para a Copa de 2014 e para os Jogos Olímpicos de 2016, tornando o espaço urbano seguro e atraente para a realização desses grandes eventos.
Do nosso ponto de vista, esses programas terão resultados pouco significativos tanto para cidade como para os moradores de favelas se os canais de participação popular não forem acionados, se não forem ouvidas e incorporadas as demandas dos movimentos sociais. Nesse sentido, os movimentos sociais de luta por moradia devem ser considerados atores sociais relevantes nesta dinâmica.
Entretanto, a questão habitacional no Rio de Janeiro não se expressa apenas na proliferação e adensamento de favelas, mas também nos sem-teto que, muitas vezes, ocupam prédios abandonados, sobretudo, na área central da cidade. Entre as principais organizações destacam-se a Central de Movimentos Populares (CMP), a União Nacional por Moradia Popular (UNMP) e o Movimento Nacional de Luta por Moradia (MNLM). Estes movimentos reivindicam autogestão com controle social das formas de produção da moradia, mas no Rio de Janeiro são poucas as experiências acumuladas em termos de recursos públicos aprovados para entidades populares. O caso mais recente de conquista neste sentido é do projeto chamado "Quilombo da Gamboa", que conta com recursos do FNHIS e foi contemplado na modalidade de ação "Apoio a Produção Social da Moradia". Os movimentos buscam também a implementação de política de desenvolvimento urbano baseada na destinação da terra urbana infra-estruturadas para a produção de moradia popular. Por isso os bairros da área central da cidade são alvo de intensas disputas, a partir de interesses e reivindicações antagônicas, como as que se expressam nos movimentos de luta pela moradia e os interesses empresariais e de governo que sustentam a operação urbana consorciada da Zona Portuária.
A incorporação da pauta dos movimentos sociais urbanos é certamente um grande desafio para a construção de um projeto democrático em uma sociedade tão desigual como é a brasileira. Propostas e possibilidades de construção de cidades melhores e menos desiguais estão lançadas. Resta à sociedade civil e aos movimentos organizados lutar e resistir às imposições que agravam a questão urbana na cidade contemporânea.
Marcelo Lopes de Souza
professor do Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza (CCMN-UFRJ) e coordenador do Núcleo de Pesquisas sobre Desenvolvimento Sócio-Espacial (NuPeD) do Departamento de Geografia
Situações em que a segregação residencial se entrelaça com os problemas ambientais, afetando justamente aqueles que já carregam o fardo da pobreza, da exploração, da posição subalterna na sociedade e da estigmatização sócio-espacial, são muito comuns planeta afora, especialmente na periferia do capitalismo (mas não só: vide o caso dos efeitos do furacão Katrina em New Orleans, em 2005). Ocorre, porém, que o Rio de Janeiro, por sua topografia acidentada e seu padrão de segregação residencial muito complexo, com presença maciça de espaços residenciais precários em encostas de morros ou beiras de rios e canais, representa essa problemática de modo, por assim dizer, superlativo.
No Rio, como em muitos outros lugares, estamos diante da seguinte situação perversa, analisada por mim em um dos capítulos de meu livro “O desafio metropolitano” (Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2000, vencedor do Prêmio Jabuti 2001, categoria Ciências Humanas e Educação): “quem menos exerce responsabilidade direta pelos impactos negativos de atividades poluidoras ou da ocupação e degradação de ambientes frágeis é quem menos possui a possibilidade (que é, como a mobilidade e a escolha do local de moradia, função da renda) de se proteger desses mesmos impactos. Pelo contrário: aqueles que, em nossa sociedade, são, na qualidade de trabalhadores, expropriados de uma parte da riqueza que geram, muitas vezes tendo de se contentar com remunerações (e condições de trabalho) infames, são, também, empurrados para locais de moradia insalubres, sujeitos a riscos ou, de todo modo, desprovidos de conforto e de vários itens de infraestrutura técnica e social básica.”
O argumento do risco ambiental não pode ser utilizado como álibi para viabilizar remoções em massa, mas é isso que se pretende fazer. Sem dúvida que, em situações de alto risco efetivo, com risco de vida para os moradores, é uma questão de bom senso e responsabilidade que não se permita a ocupação ou, já tendo ocorrido, que se providencie a transferência da população para um local adequado − sempre respeitando os princípios de “buscar uma alternativa próxima ao local de moradia original” e de “conduzir o processo de modo dialógico”, mostrando aos moradores a necessidade do remanejamento. O que não se deveria fazer, por ser antipopular, autoritário e oportunista, é instrumentalizar argumentos de proteção ambiental, ou mesmo de proteção dos interesses da população pobre, para promover, com um verniz de legitimidade, despejos. No Rio de Janeiro, o “choque de ordem” decretado pelo prefeito Eduardo Paes é, no fundo, mais um capítulo de toda uma longa série de tentativas de controlar a população pobre (controlando a sua mobilidade, sua [in]visibilidade etc.).
O grosso (mais de 80%) do déficit habitacional brasileiro se concentra em famílias com faixa de renda inferior a três salários mínimos. É muito difícil oferecer uma resposta consistente em poucas linhas a respeito de medidas que possam solucionar o problema. De toda maneira, é preciso considerar que se faz necessário distinguir entre o curto e o médio prazos, em que medidas emergenciais e/ou baseadas na legislação já existente (por exemplo, Estatuto da Cidade e a própria Constituição Federal) são viáveis e necessárias, têm de ser utilizadas; e o longo prazo, no qual é importante voltar a ousar, a pensar estruturalmente, a apostar na capacidade criativa e crítica do povo, especialmente nas possibilidades de questionamento da atual sociedade e de invenção de novas alternativas, por parte dos movimentos sociais. Para ficar nas medidas de curto e médio prazos: 1) descriminalizar e facilitar a regularização fundiária de ocupações de sem-teto (por exemplo, em prédios públicos, às vezes “abandonados” há dez, quinze, vinte anos, como acontece na Zona Portuária e no Centro do Rio de Janeiro), mas, ao mesmo tempo, sem tutelar os moradores, dando-lhes a chance de se auto-organizarem; 2) facilitar, dentro do mesmo espírito, a regularização fundiária em favelas; 3) estabelecer programas e linhas de crédito realistas e específicos, voltados para essa parcela, na qual se concentra o déficit habitacional; 4) estimular a formação de cooperativas de habitação autônomas.