Edição 278 01 de dezembro de 2009
O presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, veio ao Brasil, no dia 23 de novembro, para um encontro com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Algumas afirmações polêmicas e o controverso programa nuclear iraniano geraram inúmeras manifestações em todo o mundo, não sendo diferente por aqui. A chegada do líder iraniano foi marcada por demonstrações de apoio – como a faixa circulando nas praias de Copacabana e Ipanema com a frase “Ahmadinejad, o Rio te beija” – e de insatisfação – como protestos de grupos judeus revoltados com as declarações do governante sobre a inexistência do Holocausto.
Tantas manifestações são, em grande parte, resultados do que as mídias americana e europeia relatam sobre Ahmadinejad, não levando em conta as diferenças entre as culturas ocidental e médio-oriental. Alguns defensores alegam que traduções malfeitas podem ser um dos motivos para a demonização da figura do presidente. Além disso, a imagem do país surge como muito mais atrasada e retrógrada do que, de fato, é. A questão do sexismo, por exemplo, não é tão forte quanto parece: 51% dos estudantes de ensino superior são mulheres e, ao contrário de outros países do Oriente Médio, a burca e o niqab (véu que cobre o rosto das mulheres) não são obrigatórios.
Para comentar sobre essas questões, o Olhar Virtual entrevistou os professores Giuseppe Cocco, da Escola de Serviço Social da UFRJ, e Antônio Celso Pereira, do curso de Relações Internacionais da UFRJ.
“O que nós podemos perceber é que a vitória de Ahmadinejad nas eleições do Irã é o reflexo de um movimento nacionalista que surge como resposta a essas intervenções de potências como os EUA.”
“Acredito que aqueles que se dizem escandalizados com a visita de Ahmadinejad ao país são hipócritas. Esse argumento de que o Irã é um país violento não corresponde à verdade, pois os fatores de guerra que nós vemos hoje em dia não se resumem àquele país. Por que, então, falar de uma ameaça iraniana se países como os Estados Unidos e Israel estão, efetivamente, em guerra? O que nós podemos perceber é que a vitória de Ahmadinejad nas eleições do Irã é o reflexo de um movimento nacionalista que surge como resposta a essas intervenções de potências como os EUA.
E o Brasil surge, aí, não como um ator de ruptura, mas como mediador, tentando estabelecer uma boa relação no eixo sul-sul, independentemente de possíveis conflitos entre o Ocidente e o Médio Oriente. O que é fundamental para entender essa questão é que os conflitos surgem a partir da globalização, quando civilizações com interesses completamente diferentes se chocam.
O Brasil tem uma posição política inovadora com o governo Lula. Estamos estabelecendo uma soberania em novos termos. A política externa do país está dinâmica, mais independente. O Brasil tem, agora, um papel interessante: ele age como uma terceira força, um ator que vai se tornando fundamental na mediação de conflitos.
Acho, inclusive, que o país fez bem em se abster com relação à votação da sanção ao projeto nuclear iraniano na ONU. Nós não precisamos nos posicionar contra ou a favor para nos estabelecermos. A política nacional não é de rompimento, mas sim de estabelecimento de relações.”
Antônio Celso Pereira
Professor do curso de Relações Internacionais da UFRJ
““É válido lembrar que a grande mídia internacional está, ideologicamente, a serviço dos interesses do Ocidente. Inúmeras vezes, escondem a verdade, passam falsas imagens e interpretações da realidade político-cultural dos sistemas não-ocidentais.”
“Não se pode deixar de considerar que as diferenças culturais, principalmente decorrentes de milenar confrontação religiosa, influem na aceitação do presidente iraniano no Ocidente. Contudo, em 1979, em plena Guerra Fria, a substituição do regime monárquico pró-Ocidente do último xá do Irã – diga-se de passagem, àquela altura, um velho playboy corrupto a serviço dos Estados Unidos – pela Revolução Islâmica levaria, obviamente, à rejeição por parte do Ocidente do governo fundamentalista iraniano, sendo este um dos fatores mais importantes. Porém, no momento, é necessário também levar em conta não apenas a história do atual regime teocrático – a mudança que os clérigos xiitas impuseram na política do Oriente Médio –, mas a personalidade do presidente Mahmoud Ahmadinejad, que elegeu a vociferação como uma das formas de provocar o lado ocidental. Reeleito recentemente, em pleito amplamente contestado interna e externamente, faz questão de confirmar sua reputação de agitador fundamentalista, experiência que adquirira nos primeiros tempos da Revolução dos Aiatolás, ocasião em que comandou a invasão da Embaixada Americana em Teerã. O fato de negar o Holocausto, pregar a eliminação total do Estado de Israel, faz dele um potencial genocida e, como tal, é repudiado pelo Ocidente.
Entretanto, é válido lembrar que a grande mídia internacional está, ideologicamente, a serviço dos interesses do Ocidente. Inúmeras vezes, escondem a verdade, passam falsas imagens e interpretações da realidade político-cultural dos sistemas não-ocidentais. O Irã é a continuidade histórica do grande império persa, uma das mais importantes formações político-culturais da Antiguidade. É, portanto, formado por um grande povo, que tem história e notáveis tradições culturais. O Ocidente precisa se entender com este país, negociar, assentar-se à mesa diplomática e discutir as divergências. Sem o seu apoio, não haverá saída para a crise do Oriente Médio, em toda a sua extensão.
A questão energética iraniana também é vista de maneira polêmica pelo mundo. A energia nuclear para finalidade pacífica, no entanto, é um direito do Irã, uma vez que este país ratificou o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares e, em razão disso, renunciou ao direito de possuir armas atômicas. Não se sabe, realmente, como anda o programa, que é matéria ultrassecreta, e as informações que possuímos no Ocidente não são confiáveis. Relembrando a experiência do Iraque, entretanto, quando a CIA e o presidente George W. Bush proclamavam peremptoriamente que Saddam Hussein possuía vasto arsenal de armas de destruição em massa – que jamais foi encontrado –, isso nos leva a não aceitar, de pronto, as informações que são divulgadas pela imprensa ocidental sobre o que o Irã está a fazer nessa questão. Por outro lado, como Israel – nação com a qual Ahmadinejah se recusa sequer a dialogar – possui armas nucleares, e ninguém contesta, pode ser que o Irã procure desenvolver seu arsenal atômico para equilibrar a situação estratégica na região e, com isso, contar com um poderoso instrumento de dissuasão.
Um outro tópico que vem chamando a atenção recentemente é o alinhamento de Hugo Chávez com Mahmoud Ahmadinejad. Alinhamento esse que não expressa maiores preocupações. Chávez governa uma das maiores reservas de petróleo do mundo, assim como Ahmadinejad, e isso pode uni-los em defesa de interesses convergentes nessa matéria. O presidente do Irã preocupa os Estados Unidos pela influência desestabilizadora do regime fundamentalista iraniano no Oriente Médio, ao passo que o governante venezuelano não constitui, de fato, problema para os norte-americanos, enquanto continuar vendendo petróleo à América. O que ele fala, grita, roga praga e xinga, as afrontas verbais aos norte-americanos, à Colômbia e a qualquer um que o incomode, ninguém mais leva a sério. Esses dois presidentes têm, em comum, o ódio aos Estados Unidos.
Finalmente, a visita do governante iraniano ao Brasil pode ser vista por dois aspectos. O primeiro seria que Ahmadinejad é um chefe de Estado com o qual o Brasil mantém relações diplomáticas e comerciais. Recebê-lo logo após a visita do presidente de Israel e do presidente da Autoridade Nacional Palestina é um ato político-diplomático absolutamente normal. Por outro lado, como o nosso país constitucionalmente pauta suas relações internacionais pela prevalência dos direitos humanos, seria bastante oportuno que, durante a visita, o presidente Lula manifestasse, diplomaticamente, ao colega a preocupação nacional com o destino dos dissidentes do regime iraniano que estão presos e com a intolerância político-religiosa que vigora no país. Além disso, para uma nação que aspira a uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU, seria interessante solicitar maiores informações do presidente iraniano sobre seu programa nuclear.”