Edição 204 20 de maio de 2008
Marcelo Lopes de Souza, professor da UFRJ e ganhador do prêmio Jabuti, trabalha há aproximadamente 20 anos com a insegurança pública e se dedica a reflexões e estudos na interface de duas questões: o papel dos movimentos sociais emancipatórios e suas práticas espaciais.
Suas pesquisas procuram discutir como a violência, a criminalidade violenta e o medo contribuem para minar e sabotar a possibilidade de construção de uma sociedade com cidades mais justas e democráticas.
Vive-se um momento histórico que, se por um lado, a violência não tem nada de novo, pois existe desde o surgimento das cidades, por outro lado, nunca o medo e o risco de sofrer agressões foi tão constante e decisivo para a sociedade. A criminalidade violenta determina o cotidiano comportamental das pessoas: a decisão dessas de migrar para fugir da violência, das empresas de investirem ou não investirem em determinado local, do destaque dado aos meios de comunicação e a intensidade com que esse tema aparece nas conversas no dia-a-dia.
Diante dessa realidade, Marcelo apresenta seu mais recente livro Fobópole: O medo generalizado e a militarização da questão urbana, que representa uma análise da forma pela qual a (in)segurança pública, de medo generalizado, vai se convertendo em um formidável fator de (re)estruturação do espaço e da vida urbanos. Leia a entrevista com o pesquisador na íntegra.
Olhar Virtual – Qual o principal objetivo de Fobópole: O medo generalizado e a militarização da questão urbana?
Busco, por argumentos de caráter operacional, estabelecer as conexões de um diagnóstico o mais complexo possível. Nesse livro, procuro não banalizar as discussões, voltando-as para o plano operacional de forma inteligível. Parti das perguntas: Que fazer? Como integrar? Como conectar?
Busco colaborar para superar a segmentação dentro do debate a respeito dos problemas urbanos atuais no Brasil. Porém não falo só do Brasil, mas o utilizo como laboratório principal. Teço comparações, o tempo todo, até porque tenho experiência de pesquisa de campo e diálogo com pesquisadores e movimentos sociais de outros países na América Latina, na Europa e na África do Sul. Acho muito importante transcender esse provincianismo no Brasil. Esse processo de fobopolização se inscreve num contexto de tendências que são planetárias.
Procuro colaborar para romper com a imagem de que segurança pública é um termo conservador. A maneira como tenho pensado tanto a insegurança pública quanto a possibilidade de se construir políticas de segurança pública mais eficazes é não restringir essa e suas medidas à categoria institucional.
Olhar Virtual – Por que o termo Fobópole?
Fobópole é o resultado da combinação de dois elementos de composição, derivados das palavras gregas phóbos, “medo”, e polis, que significa “cidade”. Minha abordagem a utiliza no que se refere ao processo de urbanização no sentido qualitativo.
Observa-se bem em algumas grandes cidades da chamada semiperiferia, como na Cidade do México e em São Paulo, um fenômeno que se inscreve em escala planetária, embora cada país e cidade tenham suas especificidades por razões de trajetória histórica, culturais, socioeconômicas distintas.
O processo de urbanização vem se caracterizando, nos últimos 20 ou 30 anos, por uma presença multifacetada da percepção da insegurança pública. Há um descompasso, analisado pela própria literatura especializada há muitos anos, entre o comportamento das taxas objetivas de crime violento e a maneira como a população percebe o grau de sentimento de insegurança.
Olhar Virtual – Como a violência, o medo e as políticas públicas são atualmente discutidos no país?
Normalmente quem estuda movimentos sociais não mexe com segurança pública e vice-e-versa. Assim como quem trabalha com planejamento e reforma urbana não trabalha com segurança pública. Há campos bastante segmentados. Para você pensar e conceber políticas públicas e estratégias de enfrentamento, precisa ampliar seu campo de visão e verificar a necessidade de integrar certas correntes, sem que tudo vire uma salada dispersa.
Há aqueles que eu chamo de redistributivistas: esses explicam a problemática da insegurança pública e da violência sob a ótica econômico-social. Eles abordam as desigualdades sociais o que acaba, muitas vezes, induzindo um pensamento de relação determinista entre a pobreza e o armamento da população. Eu chamo atenção para uma mediação de instâncias, fatores de natureza cultural, simbólica e institucional. Se imaginarmos que existe uma relação linear entre pobreza e criminalidade, por exemplo, não conseguiríamos explicar a Índia em comparação com o Brasil, sendo a pobreza absoluta muito maior em Calcutá do que no Rio de Janeiro, e os níveis de violência por questões sócio-econômicas infinitamente menores. Temos sempre a mediação da cultura e a institucional, onde as instituições estão agravando o problema.
Em oposição a esse primeiro grupo, está o dos institucionalistas. Segundo eles, o relevante tanto para entender como para superar o problema é pensar em termos de legislação, as instituições policias. Ainda há o outro grupo que procura restringir seu campo de visão apenas à problemática dos valores, da crise da família, da crise dos valores.
Olhar Virtual – Hoje em dia, nas pesquisas públicas, acima do medo do desemprego está a falta de segurança pública. De que forma a mídia e sua linguagem contribuem para a espetacularização do crime e da violência, principalmente nas grandes capitais urbanas, como RJ e SP?
Não vamos cair no simplismo de dizer que a mídia inventa. Ela reverbera, repercute, amplifica, distorce, filtra, seleciona, deforma, mas não chega ao ponto de inventar. As pessoas não são simplesmente robôs, folhas em branco onde uma coisa é puramente colocada. Agora, o fato de haver uma hiper-concentração de meios de Comunicação no RJ e em SP e o fato de a Rede Globo estar praticamente concentrada nessas cidades favorecem enormemente uma exposição desproporcional. Tem-se que essas cidades são colocadas em maior evidência, assim como os seus problemas e vantagens. Cidades como Recife, Belo Horizonte e Vitória possuem taxas de homicídios maiores que RJ e SP, por exemplo, o que não costuma ser veiculado.
Outro fator que colabora para essa atividade midiática é o padrão de segregação sócio-espacial, residencial. No RJ quem mora na zona sul, por exemplo, escutou a guerra pelo controle da Babilônia e do Chapéu Mangueira. Isso em SP praticamente não existe, porque a pobreza está concentrada na periferia, longe da classe média, de maneira que certas coisas só se tornam mais visíveis para a classe média através de episódios como as ondas de ataques pelo PCC ocorridas no centro, próximo à região da classe média. O mais comum é ter a pobreza mais concentrada na periferia, exatamente o lugar onde o índice de homicídios é maior. Os casos que têm maior repercussão são os que atingem a classe média, como o da menina Isabella em SP e o do médico que esquartejou a namorada em Belém do Pará, até mesmo por ser essa fatia que compra jornal.
É necessário se informar sobre a população pobre que morre nas mãos da polícia e dos grupos de extermínio. Assim como é preciso avaliar a juventude que está sendo criada dentro dos condomínios fechados, sem contato com a realidade. Deformidades como incendiar mendigos e atacar prostitutas estão se repetindo. É preciso, digo novamente, uma reavaliação do que estamos criando.
Precisamos analisar o que está acontecendo com nosso espaço público, em função desse sentimento de insegurança que muitas vezes beira a paranóia, a histeria coletiva.
Olhar Virtual – Como você caracteriza as medidas públicas tomadas?
Diria que são insuficientes e muito parciais. As políticas públicas não se restringem apenas a medidas repressivas, estritamente policiais, são também preventivas, como rondas policiais, policiamento comunitário ou medidas que visem reformas no aparelho policial, na legislação. Temos as estratégias de contenção que objetivam garantir certa estabilidade sócio-política, pela via da intimidação, da disciplina e do controle. Isso é, no mínimo, perverso, porque, na realidade, caso essa repressão tenha certa eficácia, pode até causar um certo apaziguamento, mas qual é o preço por tal apaziguamento? É uma panela de pressão, porque diminuir os níveis de violência explícita não significa que se está alterando os de violência estrutural, as tensões, revoltas e frustrações que continuam presentes.
Há também as estratégias de contenção lights. Acredito, no entanto, que restringir as ações no campo do esporte, da arte e da música, sem que isso esteja vinculado a discussões mais profundas e consistentes sobre consciência de direitos, desigualdades e a necessidades de várias outras ações, não resolve a base do problema. Defendo a conscientização e discussão de direitos ancorados em iniciativas que objetivem criar oportunidades materiais. Não adianta propor “vamos tirar os meninos do tráfico” sem antes pensar que ocupação será dada para eles.
Corremos o risco de produzir propostas extremamente simpáticas, porém inócuas, limitadas em seu alcance. E isso acaba tendo efeito de estratégia de contenção. Pode colaborar para inserir uma meia dúzia, mas não estará eliminando o problema.
Olhar Virtual - Como o capitalismo, precursor de uma sociedade globalizada, contribui para tais frustrações?
O capitalismo contemporâneo, cada vez mais, gera em todo o mundo expectativas de consumo, sendo que apenas uma parcela poderá satisfazer essas expectativas. Isto se chama bomba-relógio. Se você tem um sistema que diz, do ponto de vista simbólico-cultural, que ser é ter e que para você ser, acima de tudo, tem que ter, bombardeando o indivíduo com necessidades reais ou pseudo-necessidades de ter tal tênis e ou tal carro, esse sistema promove o sentimento de frustração e angustia.
Olhar Virtual - Como contribuir para que as cidades não se fragmentem sócio-politicamente?
Seriam medidas de ideário da chamada reforma urbana, como a regularização fundiária, programas sérios e consistentes de geração de renda e ocupações, desestigmatização dos pobres, favelados e periferias.
O desafio é transformar a sociedade de maneira a colaborar para que se reduzam drasticamente os fatores que alimentam vários tipos de criminalidade violenta. Ou nós queremos apaziguar e diminuir os níveis de tensão sem mexer no essencial da sociedade que temos? A maioria se volta para a segunda hipótese, que pode gerar efeitos de curto e médio prazo, mas, em longo prazo, é quase suicida. Teremos a multiplicação de condomínios fechados, mas também teremos crimes dentro deles e dos shopping centers.