Edição 182 30 de outubro de 2007
Todos os anos, milhares de pessoas morrem ou ficam feridas nas vias de trânsito brasileiras. De acordo com um estudo realizado pela Associação Nacional dos Transportes Públicos (ANTP), os acidentes, por ano, deixam cerca de 34 mil mortos, 400 mil feridos e outros 100 mil deficientes físicos. Os dados são ainda mais impressionantes nos finais de semana e, sobretudo, nos feriados prolongados, quando grande parte da população viaja. Somente nos últimos oito anos, cerca de 2,5 milhões de acidentes deixaram mais de 254 mil vítimas fatais. A questão não se resume às vidas perdidas. Anualmente, o país perde 30 bilhões de reais com indenizações, gastos de saúde e perda de produção. Com o intuito de educar a população e reduzir o número de acidentes, os órgãos que compõem o Sistema Nacional de Trânsito (SNT) realizaram a Semana Nacional de Trânsito entre os dias 18 e 25 de setembro deste ano, em todo o território nacional. Palestras educativas e discussões sobre segurança e cidadania no trânsito são iniciativas contribuintes para a mudança do triste panorama das estradas brasileiras. No entanto, muitos acidentes graves continuam acontecendo. Para entender as causas desse problema, o Olhar Virtual entrevistou Marilita Gnecco Braga, professora do Programa de Engenharia de Transportes (PET) da COPPE. Confira.
Olhar Virtual: Que fator oferece mais risco de acidentes nas estradas brasileiras, a imprudência dos motoristas ou a má conservação das vias?
Marilita Braga: Os fatores não se restringem apenas a esses dois e todos são importantes ao analisar risco de acidentes. É preciso considerar também a sinalização adaptada às condições locais e eficiente para responder à necessidade de mais segurança, informando, advertindo sobre perigos e regulamentando o que é permitido e proibido, para que o motorista e outros usuários da via decidam e ajam de maneiras adequadas. Um destes fatores é o projeto da via, não é raro trechos com problemas em curvas, aclives e declives, por exemplo. Se as condições da via não são ideais, os motoristas devem ser advertidos do problema e das precauções a serem adotadas. Também não é incomum pedestres carecerem de infra-estrutura para realizar a travessia da via, em local com concentração de pedestres. Outro fator importante é a existência de estradas que atravessam aglomerações com características urbanas. O tratamento da infra-estrutura no trecho não privilegia a circulação local e, muitas vezes, permite o tráfego de passagem como se ainda fosse uma estrada e não uma via local. Os pedestres são os mais afetados em termos de risco, nessas situações. Portanto, não podemos reduzir o problema nas estradas a uma situação simplista, responsabilizando o motorista pela sua imprudência ou a má conservação do pavimento. Esses dois aspectos vêm se somar a outros, e aí surge um terceiro fator de risco: a fiscalização (voltada para a ação do motorista) precária. Se temos motoristas imprudentes, cabe inibir esse tipo de comportamento fiscalizando, tentando garantir, ao máximo, que atentem às regras de trânsito.
Olhar Virtual: A grande responsabilidade pelos acidentes é do governo ou da população?
Marilita Braga: A responsabilidade é tanto do poder público quanto da população. É mais pertinente falar em poder público do que em “governo”. O poder público não assume o seu papel integralmente e não trata de forma eficiente todas as questões que lhe dizem respeito e que são de sua responsabilidade. A população ainda demonstra uma indignação tímida com relação aos riscos no trânsito e às suas consequências, se comparada com a proporção dessas consequências. Também “cobra” pouco do poder público pelo papel que este deveria desempenhar em suas ações na prevenção dos acidentes. O trânsito é violento porque o indivíduo age de forma violenta, desconsiderando princípios e valores que deveriam nos guiar individualmente.
Olhar Virtual: Segundo o Denatran, os jovens configuram o grupo mais vulnerável e de maior exposição ao risco de morte em acidentes de trânsito, principalmente devido ao excesso de velocidade e ao consumo de bebidas alcoólicas. Por que isso acontece? Há alguma relação com a fase de auto-afirmação da juventude?
Marilita Braga: Há uma grande relação com a dificuldade de compreender risco (de todos os tipos, não apenas no trânsito), suas possíveis e graves consequências, bem como a possibilidade de ocorrência destas consequências. A percepção de que têm um “futuro enorme” pela frente, de que poderão lidar positivamente com as consequências nesse futuro, de que o seu corpo pode ser “inatingível” é um dos problemas que precisa ser abordado de forma eficiente. Mas não é fácil. A vida em grupo e com os pares também alimenta uma sensação de força que não é realista, assim como pode causar inibições quanto a se comportar de forma diferente do grupo.
Olhar Virtual: Educar a população é realmente a melhor maneira de prevenir acidentes e evitar mortes no trânsito?
Marilita Braga: É uma das maneiras, em conjunto com outras importantes no trabalho de prevenção. Mas é necessário educar desde muito cedo. É muito mais difícil influenciar na fase adulta para que comportamentos adequados sejam adotados em sociedade. Por isso o papel importante da família, primeiro contato da criança com valores e princípios, muito antes da escola. Valores e princípios também são adquiridos no convívio com os exemplos de atitudes e de comportamentos no nosso entorno, no meio no qual estamos inseridos.
Olhar Virtual: Por que mesmo com campanhas como a Semana Nacional de Trânsito a imprudência continua presente entre os motoristas?
Marilita Braga: Educação é um processo continuado e que deve ser direcionado de forma diferente para grupos distintos, faixas etárias distintas, características diversas. Por outro lado, considero que o Brasil ainda não conseguiu encontrar a melhor forma de dirigir mensagens em campanhas voltadas para a imprudência e comportamentos equivocados no trânsito. Começamos a ver algumas experiências mais inteligentes na tentativa de atingir esse alvo, mas são ainda insuficientes.
Olhar Virtual: “Se beber, não dirija. Se dirigir, não beba.” Propagandas que repudiam a combinação álcool e volante são suficientes para persuadir a população?
Marilita Braga: Considero que não são suficientes. O ser humano é persuadido quando ele se convence de que tem algo a “ganhar” se mudar sua forma de agir. Portanto, no estágio atual, é mais fácil a pessoa pensar que está perdendo algo (convívio com o seu grupo, suposta alegria, descontração etc.) ao deixar de beber. Também é difícil convencer o motorista a deixar o seu carro, pois ao longo do tempo as pessoas foram “convencidas” pela propaganda e pela sociedade a valorizar o automóvel, como se fosse uma parte do próprio indivíduo. Finalmente, se a lei determina, mas se não houver fiscalização para que seja cumprida, pouco vai adiantar fazer propaganda de que não se deve beber e dirigir um veículo.
Olhar Virtual: Se as atuais campanhas não funcionam, qual a melhor forma de educar a população? Como a COPPE/UFRJ atua nesse sentido?
Marilita Braga: A educação começa desde cedo, desde que nascemos. Devemos educar para que todos sejam efetivamente cidadãos, de forma abrangente. As pesquisas realizadas na COPPE/UFRJ, na área de educação para o trânsito, partem desses princípios. A ênfase nas nossas propostas, até o momento, é na educação da criança. Trabalhamos conceitos como a necessidade de reflexão sobre o assunto por parte do público-alvo, a possibilidade de vivenciar valores fundamentais como a solidariedade e a cooperação, trabalhar a formação ética, solidária e cidadã para a melhoria do trânsito e a formação de sujeitos responsáveis por sua própria vida e pela dos demais. Defendemos a idéia de que a criança tenha liberdade de expor sua visão, sua percepção e suas experiências. Ao se expor, pais e professores têm condições de dialogar com elas a respeito, incentivando-as a refletir sobre seus problemas, suas responsabilidades, suas formas de conviver com o trânsito, com as outras pessoas e com as situações do dia-a-dia. Além disso, com base nos resultados da tese de doutorado do engenheiro Eloir de Oliveira Faria, da qual fui orientadora, e com o apoio do CNPq e da Faperj, desenvolvemos um portal de educação para o trânsito (www.transitocomvida.ufrj.br). Nesse portal, propomos atividades voltadas para a criança e fazemos recomendações e sugestões para auxiliar os professores que trabalhem com esse tema. Mas o portal pode ser usado fora da escola também. Num “joguinho” de simulação, o aluno percebe que os problemas de circulação e de segurança devem ser resolvidos levando em consideração as particularidades e necessidades dos diferentes usuários da via: não há solução possível ao se privilegiar um único tipo de usuário.