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Edição 234      16 de dezembro de 2008


Olho no Olho

Distribuição de seringas provoca polêmica na Câmara
dos Deputados

 

Camilla Muniz e Júlia Faria

imagem olho no olho

No último dia 3 de dezembro, a Comissão de Seguridade Social e Família, da Câmara dos Deputados, aprovou o projeto de lei que prevê a distribuição de seringas, agulhas e preservativos para usuários de drogas. Segundo a proposta, de autoria da deputada Cida Diogo (PT-RJ), o Sistema Único de Saúde (SUS), além de financiar a distribuição, deve promover campanhas de conscientização acerca dos riscos inerentes ao uso de drogas. A medida faz parte de uma política de redução de danos aos dependentes químicos, que visa diminuir os índices de transmissão da AIDS e das hepatites virais.

As seringas e agulhas distribuídas aos usuários de drogas injetáveis serão trocadas por materiais já utilizados. Postos de atendimento ficarão responsáveis pelo cadastro dos dependentes que quiserem participar do programa e oferta de tratamento, além do descarte adequado dos objetos recolhidos.

Embora a prática não esteja regulamentada, ela já é realizada em algumas regiões do país, onde sua eficácia pôde ser comprovada. No entanto, a aprovação da proposta não foi unânime, tendo despertado críticas de parte da bancada parlamentar. Os argumentos contrários à medida dividem-se entre a utilização de dinheiro público para efetuação do programa e o possível incentivo ao uso de drogas.

Para elucidar a polêmica, o Olhar Virtual conversou com Marcelo Santos Cruz, coordenador do Programa de Estudos e Assistência ao Uso Indevido de Drogas (PROJAD) do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, e com Luciana Boiteux, professora adjunta de Direito Penal da Faculdade Nacional de Direito (FND) e membro da Comissão de Política de Drogas do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) e do Conselho Consultivo da Rede Brasileira de Redução de Danos e Direitos Humanos (REDUC).

 

Marcelo Santos Cruz
Coordenador do Programa de Estudos e Assistência ao Uso Indevido de Drogas (PROJAD) do Instituto de Psiquiatria da UFRJ

Dependentes químicos tendem a compartilhar agulhas e seringas por desinformação sobre os riscos ou, em geral, porque costumam ter menos cuidado, expondo-se a situações perigosas. Isso acontece tanto porque o efeito da droga diminui a percepção e a motivação para o cuidado pessoal, como pelo fato de muitas vezes essas pessoas serem bastante impulsivas. Já ouvi de usuários de drogas justificativas para o compartilhamento de material, como seringas e agulhas. A impulsividade ou o efeito das drogas provocam ações das quais, com freqüência, os pacientes se arrependem posteriormente. No entanto, freqüentemente, este sentimento de arrependimento não perdura e não é suficiente para impedir que, em outras situações, eles novamente se exponham a riscos. Informar sobre os riscos do uso das substâncias faz parte da rotina dos profissionais que atendem pessoas que apresentam problemas com drogas. No trabalho com dependentes químicos, eles são conscientizados que o compartilhamento de seringas e agulhas propicia a transmissão de doenças. Infelizmente, a resposta à informação não é imediata. Pode-se comparar este fato com muitas outras situações — como fumar tabaco, comer exageradamente alimentos com muita gordura ou açúcar, beber e dirigir — em que pessoas não conseguem mudar seu comportamento, embora estejam informadas das conseqüências negativas ou perigosas que seus atos podem envolver.

A meu ver, a distribuição gratuita de seringas, agulhas e preservativos será eficaz na redução do número de pessoas infectadas por HIV e outras doenças. Não apenas acredito nisso, como há inúmeras pesquisas no Brasil e no exterior que demonstram isto de forma inequívoca. É notável que a medida não deve ser feita isoladamente, mas sim associada a várias outras ações, como oferecer tratamento para dependência de drogas, além de exames e tratamentos para outras condições clínicas, como doenças sexualmente transmissíveis e outras.

A prática de troca de seringas usadas por novas iniciou-se em 1992 no Brasil. Portanto, a lei proposta vem apenas normatizar uma prática que existe desde então com apoio do Ministério da Saúde. Não há registro de aumento do uso de drogas injetáveis no país neste período. O mesmo se verifica em muitos outros países. Por outro lado, as taxas de participação de usuários de drogas injetáveis entre o grupo de pessoas com HIV/AIDS caíram de 29% para 8% no período. Não acredito que essa medida possa auxiliar na manutenção da dependência química, justamente porque a troca de seringas ocorre em conjunto com várias outras ações que visam à saúde do indivíduo. A experiência dos serviços que realizam trocas de seringas, no Brasil e no exterior, para pessoas que não querem ou que ainda não conseguem parar de usar drogas, mostra que esta estratégia aproxima o indivíduo dos serviços, propiciando que ele peça ajuda para parar de usar drogas mais adiante.

Além disso, uma das obrigações do Estado é oferecer serviços de saúde para toda a população. Entre eles, estão as ações para diminuir os riscos de doenças. Não oferecer a troca de seringas seria excluir pessoas que usam drogas injetáveis de seu direito às ações de prevenção. Além de cruel, o argumento financeiro, que critica o uso de dinheiro público para execução do projeto, é equivocado. Usuários de drogas injetáveis que não recebem ações de prevenção têm mais riscos para si de contrair doenças, porém oferecem também mais perigos para pessoas que não usam drogas injetáveis. As ações de prevenção diminuem os riscos de contágio por via sexual e da mãe para o feto. Se não há ação de prevenção para usuários de drogas injetáveis, a contaminação destes e dos que tem contato sexual ou por sangue com eles tem um custo muito maior do que os das ações de prevenção. Assim, mesmo levando em consideração os custos, as ações de prevenção através da troca de seringas são altamente recomendáveis. Nesse sentido, acredito também que essa medida não representa um caminho para a legalização das drogas, pois o estatuto legal das drogas passa por uma discussão muito mais ampla. O assunto é complexo e as simplificações são muito enganosas.

 

Luciana Boiteux
Professora adjunta de Direito Penal da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ

A distribuição de seringas e agulhas, assim como de preservativos, é uma medida de prevenção à saúde pública e, sem dúvida, combate a exclusão dos usuários de drogas, pois tem por objetivo a redução dos riscos desse consumo realizado na clandestinidade, em situação precária. O compartilhamento de seringas foi identificado como a causa para o grande aumento da contaminação de usuários de drogas injetáveis pelo vírus HIV e hepatites virais. Medidas deste tipo são eficazes e atingem a raiz do problema. Se não se consegue que os usuários deixem de consumir drogas, é melhor, pelo menos, garantir que o façam de forma mais segura, com menor risco de transmissão. São exemplos de medidas de "redução de danos", que constituem uma política de saúde pública pragmática, compreensiva e humanitária, que visam dar atenção ao usuário de drogas, por meio de informação e auxílio material para prevenir o contágio e a transmissão de doenças a que os dependentes químicos, e a população em geral, no caso dos preservativos, estão sujeitos.

Por outro lado, pela nova Lei de drogas (nº 11.343/2006), segundo seu artigo 28, o usuário não mais pode ser preso, um avanço que reduz a estigmatização imposta pelo sistema penal ao usuário de drogas e permite uma maior abertura para a implementação de medidas preventivas, e não repressivas. O novo modelo criado pela nova lei é mais aberto para políticas de redução de danos, pois garante direitos básicos aos usuários de drogas, o que não ocorria antes.

Os quase cem anos de tratados internacionais proibicionistas de uso e consumo de drogas representam o fracasso do controle de drogas por meio do sistema penal e da prisão em especial, que acarreta danos à saúde dos usuários, que ficam sujeitos aos riscos do consumo ilícito, clandestino e da falta de controle do produto que consomem. A literatura sobre o tema é farta no sentido de indicar que a prevenção ao uso de drogas deve se dar com base no ideal de moderação do consumo, e pela disponibilização de informações, auxílio e tratamento voluntário no sistema público de saúde, mediante o reconhecimento da autonomia da vontade do sujeito. Esta idéia se opõe ao ideal de abstinência, que trabalha com a ilusão do controle estatal, por meio da probição e da utilização do sistema penal como meio de intimidação e repressão do usuário.

Estes quase cem anos passados desde as primeiras leis de drogas no mundo e, segundo dados das Nações Unidas, o número de usuários aumentado revela que as drogas estão cada vez mais potentes. Ao mesmo tempo, as prisões estão cheias de viciados e pequenos traficantes, sem que se tenha controlado o circuito de drogas, que foi se tornando cada vez mais violento, especialmente no Rio de Janeiro. Somente medidas que tenham como base a vontade do sujeito podem ser eficazes à melhoria de suas condições de vida, enquanto os tratamentos compulsórios e a pena de prisão são formas ilusórias de intimidar o usuário ou o comerciante.

A distribuição de seringas como meio de prevenção da AIDS é uma medida de saúde pública que tem se mostrado eficaz na redução dos índices de contaminação do HIV e já é parte da política pública brasileira de saúde faz muitos anos, reconhecida em leis estaduais, como em São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, e também na Portaria nº 1.028/95 do Ministério da Saúde, além de suas bases estarem já estabelecidas na Lei nº 11.343/2006.

A iniciativa do Congresso Nacional de votar uma lei federal especificamente para tratar dessas políticas de saúde pública, sem dúvida alguma, dará reforço na defesa de direitos humanos dos usuários de drogas, mas a legalidade de tais medidas já é reconhecida e adotada em âmbitos federal e estadual. O desafio atual é sua diversificação, ampliando-as para além da simples distribuição de seringas e de informações, como já fazem outros países que prevêm em suas legislações salas de consumo seguro, fornecimento de drogas para tratamento de substituição, dentre outras medidas mais polêmicas, ainda não aplicadas no Brasil, mas que deveriam ser discutidas, diante de sua reconhecida eficácia para melhorar as condições de saúde de dependentes químicos.

O projeto de lei em tramitação complementa a Lei nº 11.343/2006 que, em seu artigo 20, afirma: "constituem atividades de atenção ao usuário e dependente de drogas e respectivos familiares, para efeito dessa Lei, aquelas que visem à melhoria da qualidade de vida e à redução dos riscos e danos associados ao uso de drogas", pois especifica algumas medidas básicas de redução de danos, por meio de lei federal, medidas já aplicadas com sucesso.

Entendo que as críticas dos opositores do projeto são incoerentes pois, de acordo com a Constituição Federal, é dever do Estado garantir a saúde pública. Essas são medidas urgentes que têm por objetivo reduzir a transmissão de doenças, não havendo nenhuma razão plausível para não serem aplicadas, diante de sua eficácia já comprovada.

Além disso, tais medidas não têm relação direta com a legalização das drogas, pois se mostram compatíveis com a política nacional de drogas atual, que postula a atenção e o tratamento do usuário e não a sua prisão. Porém, o consumo de drogas apenas aumenta e a política repressiva somente gera mais problemas de saúde e violência; esta situação nos faz refletir sobre qual sistema de controle de drogas desejamos para o futuro. Creio que a política de drogas atual fracassou nos seus objetivos declarados, ou seja, eliminar o consumo, a produção e a venda de drogas. Mostra-se necessário, então, pensar em caminhos alternativos, já existindo propostas concretas como a descriminalização das chamadas "drogas leves", o caso de Portugal e Espanha, além da experiência sui generis holandesa e as propostas mais radicais de legalização. É possível zelar pela saúde dos usuários e reduzir o poder do mercado ilícito por meio de políticas mais humanitárias, racionais e justas, que evitem a prisão, a estigmatização e a violência que hoje caracteriza o modelo proibicionista de controle de drogas, que continua sem atingir os seus objetivos declarados. Porém, há ainda que ser aprofundada a discussão sobre os melhores caminhos a seguir nessa seara tão polêmica da política de drogas.

 

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