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Edição 234      16 de dezembro de 2008


Entrelinhas

O sistema e a mente

Aline Durães

capa do livro

Uma questão moral. Esse foi o motivo que levou Clara de Góes, professora do departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), a escrever o livro Psicanálise e Capitalismo, lançado no último dia 15, na livraria Argumento, de Copacabana.

Editado pela Garamond, o livro aborda a Economia e os impactos que ela tem sobre os indivíduos e a sociedade. Dividida em quatro capítulos, a obra trata, entre outros temas, de economia psíquica e economia do capital. A autora contrapõe, ainda, as teorias de Marx e Freud, apontando suas semelhanças.

Em entrevista ao Olhar Virtual, Clara de Góes afirma que o Capitalismo e a Psicanálise estão interligados e pontua que “a busca pelo lucro e a competitividade são o que surge de um modo de produção que inscreve na própria estrutura o estranhamento como um tipo de alienação que assume a forma ou a função de um sintoma ou de uma neurose”. Confira a entrevista na íntegra.

Olhar Virtual: O que a motivou a escrever um livro sobre a relação entre a psicanálise e o capitalismo?

Por que escrever um livro sobre psicanálise e capitalismo? Por uma questão moral. O que motiva este livro é uma angústia que se articula no campo da moral. Uma angústia que me lançou na busca de outra ética não vinculada ao capital, à religião ou à revolução. Não porque estas tenham fracassado; somente a revolução fracassou. O capital e a religião são os vitoriosos do mundo moderno. Fracassou a revolução, quando pretendeu lançar outro paradigma que não o do mercado sem cair para o lado da religião, mantendo-se no campo do materialismo laico. Eu acho que não se pode abrir mão dessa herança que tanto custou para se impor à humanidade.

Essa derrota, no entanto, não torna menos aguda a indignação com uma sociedade como a nossa. A indiferença que o capital produz e requer é inaceitável. Não é possível suportar o modo como a maioria da população é tratada, os jovens brutalizados e as crianças abandonadas à própria sorte. Isso é um horror. Eu não consigo me habituar a isso. E penso que essa questão não se articula como uma questão econômica. Talvez em um segundo momento, porque, a princípio, ela é de ordem ética. O ponto de partida é ético. É, de fato, tornar inaceitáveis certas práticas.

Olhar Virtual: E onde entra a psicanálise?

Não é que ela tenha o que dizer a respeito da questão social. Acho que não tem. A psicanálise, no entanto, se define como uma práxis, portanto, como uma ética. E por aí ela se opõe ao discurso do capitalista. Ela se articula pela sustentação do desejo, sustentação que implica uma operação simbólica de castração da qual o capitalista não quer saber, pois o que ele propõe é o gozo infindável dos bens. É possível derivar dessa outra ética, a ética da psicanálise, outra política? Uma política que opere fora dos limites da representação? É esse o nosso desafio. O livro é um ponto de partida para pensá-las.

Olhar Virtual: No livro, a senhora parte da premissa de Lacan de que não foi Freud quem explicou primeiro o sintoma, mas Marx. Que tipo de relação existe entre Marx e a psicanálise?

Lacan diz que Marx inventou o sintoma, não que ele o explicou. A relação entre Marx e a psicanálise, obviamente, é teórica e foi construída por Lacan. Ela se torna evidente depois que Lacan a apontou. Marx é um bom ponto de partida para se adentrar na psicanálise. Depois de pesquisar e escrever este livro, fiquei com a impressão de que Lacan leu Marx profundamente, assim como fez com Freud. Sua invenção, ele diz, foi o objeto a cuja função foi formulada tendo como referência a mais-valia de Marx. Lacan vai dizer que a mais-valia é homóloga ao mais-de-gozar que é a função do objeto. O que isso quer dizer? Nesse momento, teremos que entrar na teoria dos gozos de Lacan. Aí, sugiro a leitura do livro.

Olhar Virtual: Que opiniões relevantes de Freud sobre a economia poderiam explicar a forma como o indivíduo se relaciona com o capitalismo?

Eu não falaria em termos de opiniões, mas da teoria ou da práxis que ele constrói. Acho que o ponto central de enlaçamento entre o indivíduo e o capitalismo pode ser pensado pela via do objeto perdido, que é de onde parte a psicanálise. Quando Freud diz que o sujeito está diante de um objeto desde sempre perdido e que é por aí que o mundo lhe chega, está nos dando a referência para pensar essa "relação". Veja bem: ele não diz que não há objeto, ou que o objeto é o nada, ou que o objeto é inatingível, incognoscível, ou mesmo que tenha havido um momento em que a perda se dá. Freud fala de um objeto desde sempre perdido, o que obriga a criação de uma nova lógica diferente da lógica aristotélica transformada em senso comum. É como se existisse, sempre no horizonte do capitalismo, uma promessa, a promessa de restituir o objeto perdido, de recompor uma unidade perdida.

Olhar Virtual: Quais as principais semelhanças entre a teoria freudiana e a marxista?

A semelhança está na formulação da economia psíquica feita por Freud na qual, depois de Lacan, se pode ler no modo de operação psíquica a forma do valor e da mais-valia.

Olhar Virtual: A forma como o sistema capitalista se organiza, a busca pelo lucro e a intensa competitividade são capazes de gerar neuroses no indivíduo?

Quando Marx formula, nos Manuscritos Econômico-filosóficos de 1844, o mundo como estranhamento, ele constitui como sintoma o próprio modo de produção do capital. A busca pelo lucro e a competitividade é o que surge de um modo de produção que inscreve na própria estrutura o estranhamento como um tipo de alienação que assume a forma ou a função de um sintoma ou de uma neurose.

Olhar Virtual: Há poesias no livro? Por quê?

Há poesia no livro. Pelo menos eu espero que haja. Por quê? A princípio porque ela quis comparecer. Irrompia ao longo da escrita mais teórica e eu fui deixando e percebendo (ou interpretando) que um ritmo estava se estabelecendo. Daí se estabelecia outro espaço, o espaço de um corpo que padece e subjaz a toda teoria. Há uma respiração no texto que permanece como vestígio do processo que deu origem ao livro.

Olhar Virtual: Em sua opinião, qual a principal contribuição que o seu livro poderá dar aos estudos sobre o tema?

Eu gostaria de estabelecer um cruzamento da história pela psicanálise que não sucumbisse às explicações psicológicas para acontecimentos atuais ou passados. A psicanálise tem como material a trabalhar os restos. Assim como a história. O problema é que a história está sempre apontando para um saber totalizante, enquanto a psicanálise assume o buraco e a falha como constitutiva de qualquer construção que produza efeitos de verdade.

 

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