Edição 216 12 de agosto de 2008
Questões legais podem revelar situações conflitantes e gerar grandes polêmicas que envolvem toda a sociedade, como o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o uso de células-tronco, políticas assistencialistas do governo, utilização de cotas nas universidades, entre outras.
No dia 7 de agosto, o Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (COPPE) realizou o “Caia nesta loucura 4: cidades, redes e políticas públicas de inclusão”, que discutiu a questão legal e a Saúde Mental. Assim como nos demais casos, as opiniões sobre a existência ou não de uma legislação específica para atender aos pacientes com distúrbios mentais são divergentes. Atualmente, não existe uma legislação que os proteja de forma direta; é preciso recorrer a leis alternativas, em que cada situação possa ser encaixada. Um exemplo está no atual sistema de cotas de trabalho nas empresas que exclui, dentre os deficientes, as pessoas com doença mental.
A UFRJ possui um projeto de extensão criado em junho de 2007, intitulado Núcleo Interdisciplinar de Ações para a Cidadania (NIAC), que envolve as áreas de Direito, Psicologia, Serviço Social e Arquitetura para atender principalmente (mas não exclusivamente) a população residente no bairro da Maré por problemas de natureza jurídica, social, psicológica e outras. Os encaminhamentos podem ser feitos pelo próprio interessado ou por membros da associação de moradores.
O professor Pedro Paulo de Bicalho, coordenador do Núcleo, concedeu uma entrevista ao Olhar Virtual para falar sobre os principais entraves enfrentados por pessoas com necessidades especiais e de que forma a lei pode ampará-las.
Olhar virtual: O que diferencia o NIAC dos demais projetos nessa área?
Nós do NIAC não entendemos que a questão legal se esgota na questão jurídica. Quando o usuário, por um problema qualquer, chega ao Núcleo, é atendido pelas equipes multidisciplinares e estas decidem o melhor encaminhamento para aquela determinada situação. Esse é o grande diferencial do Núcleo, porque ele nasce para ser um escritório modelo de justiça, não está restrito a ações penais do Direito, porque acreditamos que toda essa sociedade penal na qual nós vivemos, o tempo todo pedindo mais punição, na verdade é o resultado de uma lógica neoliberal. A nossa tentativa é de fazer com que a garantia de direitos seja maior do que a punição.
Olhar virtual: De que forma o Núcleo Interdisciplinar de Ações para Cidadania atua na questão legal referente à saúde mental?
Nós atendemos prioritariamente a população da Maré, mas estamos abertos a demandas de qualquer outro lugar. Quando nossos encaminhamentos não podem ser feitos no próprio núcleo, utilizamos a rede já existente e encaminhamos cada caso. Em relação à saúde mental, percebemos que, por conta até mesmo do nosso público, ocorrem muitos encaminhamentos equivocados, de pessoas que chegam teoricamente com problemas de saúde mental, mas na verdade possuem apenas uma intolerância qualquer como a homofobia (aversão a homossexuais).
Olhar Virtual: O senhor acredita que precisa haver uma legislação específica?
Nós não entendemos que seja necessária uma legislação específica para dar conta da saúde mental. Lutamos para que a gente não precise de leis específicas para fazer com que a Constituição Federal seja um instrumento legal que dê conta de todos nós, independentemente da nossa singularidade. Se existem tais leis, elas devem ser paliativas para dar conta de alguma situação momentânea.
Olhar Virtual: De que forma a sociedade pode realmente ajudar nisso?
A sociedade precisa participar, entender que as questões de saúde mental e justiça são para todos nós e não apenas para alguns.
Olhar Virtual: O que mais lhe chamou a atenção durante esse ano de trabalho?
Além da grande quantidade de casos que nos são encaminhados sem apresentarem de fato alguma doença mental (só durante esse primeiro ano, dos 167 casos que atendemos, menos de 10 foram realmente encaminhados à Justiça), algo que nos despertou a atenção foi a influência do tráfico e da violência na vida cotidiana dessas pessoas. Um exemplo disso pode ser observado no programa de extensão da UFRJ que funciona ao lado do NIAC, o pré-vestibular comunitário do Caju. O Caju hoje tem duas unidades dentro do mesmo bairro, porque existe uma que os alunos não têm acesso em função da própria cultura do tráfico na localidade. A situação faz com que os programas e projetos tenham que ser planejados em função das restrições.
Olhar Virtual: Para o senhor, o que justifica esse alto número de encaminhamentos errados?
Vivemos em uma sociedade que está pedindo cada vez mais punição e entendendo que a vida deve ser cada vez mais não apenas medicalizada, mas judicializada; isso justifica esses encaminhamentos ao NIAC, que resolvemos aqui mesmo sem precisar levar à justiça. Entendemos que ter acesso à justiça não é necessariamente produzir processos judiciais, mas fazer com que os próprios sujeitos resgatem a autonomia e se desvinculem daquele lugar de tutela que essa sociedade neoliberal está o tempo todo os colocando.
Olhar Virtual: De que forma a psicologia atua junto a esses pacientes?
O nosso trabalho, quando fazemos um parecer para o juiz, não pretende, de maneira nenhuma, julgar por ele e indicar a resposta, mas sim de confundi-lo, mostrar pra ele que julgar a vida de alguém é algo extremamente complexo.
Olhar virtual: De que forma a lei protege esses pacientes com distúrbios mentais?
Na verdade, temos todo o processo da reforma psiquiátrica, que é extremamente importante na mudança da forma de entender a saúde mental, mas ainda temos um grande problema quando lidamos com pessoas que estão envolvidas com o processo de criminalização e esse é o principal público do NIAC. A lei ainda entende o portador de doença psíquica como alguém que não é putável, mas essa imputabilidade significa uma medida de segurança e isso quer dizer que ele só vai sair dessa medida quando alguém disser que ele não possui mais periculosidade. E aí é que entra o grande nó, porque quem é que vai dizer que alguém não é mais perigoso? Eu não digo isso de mim mesmo. Na verdade, o que nós temos para o público de saúde mental que está nos manicômios judiciários é a verdadeira prisão perpétua.
Olhar virtual: Como mudar essa realidade?
É preciso que a sociedade entenda a criminologia para além da pena. Ela se faz pela relação entre a produção de uma norma, sua transgressão e o castigo previsto. A produção dessa norma também precisa ser discutida. Não se trata apenas de identificar se a pena é essa ou aquela, mas de pensar qual norma produz essa transgressão e por qual razão essa transgressão produz pena. Desse debate a gente não pode fugir.