Edição 229 11 de novembro de 2008
A Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenem) criou um dispositivo eletrônico contendo nome e dados dos contratantes inadimplentes de serviços educacionais particulares, chamado Cadastro Nacional de Informação dos Estudantes Brasileiros (Cineb), e consiste, segundo a Confederação, numa tentativa de impedir a ação de inadimplentes “propositais” que se valem de brechas legais. O cadastro, que passou a funcionar na última semana de outubro, já conta com 700 escolas participantes e 43 mil nomes cadastrados. A iniciativa causou, contudo, bastante polêmica. De um lado, pais que consideram a atitude abusiva e constrangedora, de outro, 37 mil escolas de todo o país que sofrem com a inadimplência que já chega perto dos 15%.
A Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça considera que o cadastro fere o direito do consumidor ao pressupor que o devedor não paga a mensalidade porque não quer e limita a liberdade do aluno para mudar de escola. O presidente do Procon de São Paulo, Roberto Pfeifer, ratificou essa opinião em entrevista à imprensa nacional: “O Procon orienta que qualquer pai que tenha seu nome inscrito e matrícula negada com base nessa inscrição nos procure e denuncie. Nós apuraremos e mediaremos a solução do problema e tomaremos medidas de sanção contra os estabelecimentos de ensino”.
Em contrapartida, a Confenem argumenta que só serão registradas pessoas endividas há mais de 90 dias, que não aceitaram ou procuraram qualquer tipo de negociação e ainda que foram avisadas previamente da inclusão de seu nome no cadastramento. “O objetivo não é constranger aquele inadimplente vítima de um problema financeiro momentâneo”, explica Fernando Vidal, presidente da Check Check, empresa de informação de crédito que desenvolveu a ferramenta de consulta. Além disso, a Confenem ressalta também que não há lei que impeça o funcionamento dos serviços de proteção ao crédito, a negativação do nome de devedores ou a cobrança da dívida e exemplificam com o SPC e SERASA. Vale salientar ainda que a lista de inadimplentes não pode ser acessada por qualquer pessoa, mas apenas por colégios cadastrados.
Diante da polêmica, o Olhar Virtual conversou com Miriam Abduche Kaiuca, vice-diretora do Colégio de Aplicação (CAP) e Francisco Amaral, professor da Faculdade de Direito da UFRJ, para discutir a questão, entender se tal medida é viável nos trâmites legais e debater, ainda, possíveis conseqüências ao aluno e à educação brasileira.
Tecendo alguns breves e ligeiros comentários, dentro de uma perspectiva global sobre o atual problema do Cadastro Nacional de Informação dos Estudantes Brasileiros – CINEB, neste momento, o que se discute não é a criação, atuação ou “proteção” de Lei para o Cadastro em questão, mas a gravidade da concepção de um projeto onde há uma acentuada valorização das escolas privadas, principalmente, para a educação básica. Acredito na oportunidade, historicamente pertinente, de se construir uma proposta de luta de educação para o país organicamente sistematizada, profundamente pública e mais próxima das necessidades da população brasileira.
Florestan Fernandes (1975) afirma que “com o tempo, as inquietações progridem por si próprias, se difundem e se robustecem” e, assim, a população encontra-se diante de uma discussão de base legal, jurídica e econômica que camufla um dos focos primordiais das inquietações da educação brasileira: a tensão entre o ensino público e privado.
A Carta Magna da educação, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9.394, de 1996, simplifica algumas questões fundamentais como a carreira e valorização dos profissionais da educação, os pressupostos da educação indígena, da cultura africana e da educação física, colocadas de maneira que permite o estreitamento de suas concepções. A valorização destes profissionais e sua carreira estão ausentes; a cultura africana, a educação indígena e a educação física são tratadas de forma aligeirada. Embora nos últimos três anos já presenciamos um processo de mobilização dos segmentos atingidos, conseguindo alguns avanços educacionais que se transformaram em pareceres, leis com vistas a dar um novo significado a estes pontos nevrálgicos, entre alguns exemplos.
Ainda na leitura da LDB – 9394/96, no artigo 3º, nos incisos “V – coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; VI – gratuidade do ensino público em todos os níveis” pode-se apontar que ao suprimir a antiga expressão “incentivando-se a colaboração entre o Estado e a sociedade” por ela dar a entender que, ao invés da coexistência, a Lei estaria propugnando a complementaridade entre escolas publicas e privadas, no sentido de divisão de mercado. Diante do exposto, o que ocorreu, desde então, foi uma inversão de valores com um agigantamento das escolas privadas e um acentuado abandono ao entendimento da educação como um direito de todos e a educação básica pública devendo ser assegurada para todos. Nesta mesma linha de articulação da Lei, o inciso IX, do mesmo artigo, inscreve que haja “garantia de padrão de qualidade, na forma desta lei e da legislação dos sistemas de ensino” o que representa para os educadores da esfera pública o impedimento da deterioração do ensino público.
Neste movimento das tensões de fragilidade e indefinição de políticas públicas quanto ao ensino público, cresceu em torno das escolas privadas uma mentalidade pequeno burguesa de que “só é bom e de boa qualidade o colégio privado, o colégio religioso, o colégio em que há patrão para tutelar” e outras crendices privatistas, abandonado outros ideários da escola pública, laica e de qualidade preconizadas desde o Manifesto dos Pioneiros de 32.
Paralelas a estas questões escolares e educacionais, as famílias brasileiras, em sua grande maioria, começaram a viver problemas econômicos que se tornaram dilemas sociais. Acredito que ninguém é mau pagador porque quer, ou os cidadãos perderam sua renda por má condução da conjuntura econômica com políticas erradas ou por políticas comprometidas ou porque há pouco investimento em infraestrutura gerando pouco emprego na economia brasileira. Num Estado onde se gasta dinheiro com a dívida pública em média de R$ 200 bilhões de juros, por ano, há que se refletir e comparar momentos históricos: nos anos 40, dizia-se que o Getúlio Vargas era o pai dos trabalhadores e a mãe dos patrões e, nesta linha, no início do século XXI, o atual presidente Lula é o pai dos trabalhadores e a mãe dos banqueiros. Os investimentos são reduzidos nas áreas públicas e as condições concretas de vida dos cidadãos brasileiros estratificaram-se por níveis bem baixos de poder aquisitivo.
Desta forma, cabe agora entender as situações de luta de classe para transpor os obstáculos simbólicos que limitam a valorização das instituições publicas a um novo paradigma à altura das necessidades brasileiras. Se a opção for acreditar na escola pública como ela merece ser vista não se tem outro caminho senão viver plenamente a opção, como dizia Paulo Freire, “diminuindo assim a distância entre o que dizemos e queremos com o que fazemos”. O futuro do Brasil não depende só da economia, mas da educação e da cultura. Um país de homens sem imaginação é pobre e incapaz de dar ao homem instrumentos para transformar o mundo.
Se essa iniciativa destinar-se a cadastrar os alunos inadimplentes quanto ao pagamento de suas mensalidades escolares nas instituições de ensino em que estão matriculados, é uma iniciativa juridicamente inadmissível. Essa medida contraria os direitos que protegem a personalidade do aluno, mais propriamente o direito à sua integridade moral, à sua privacidade, ao sigilo dos seus dados pessoais. A divulgação desses dados, no caso, o seu eventual inadimplemento em face da escola em que estuda, é ofensiva à dignidade pessoal, à esfera de privacidade a que a pessoa tem direito na forma da Constituição da República Federativa do Brasil, [Art. 5º, X (são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;)] do Código Civil, [Art. 21 (A vida privada da pessoa natural é inviolável…)] e do Código de Defesa do Consumidor, no que respeita a Política Nacional das Relações de Consumo (Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade...)
As relações entre o aluno e o estabelecimento de ensino regulam-se especialmente pela Lei nº 9.870, de 23 de novembro de 1999 que dispõe no seu artigo 6º sujeitar-se o contratante, no que couber, às sanções legais e administrativas, compatíveis com o Código de Defesa do Consumidor, e com o Código Civil Brasileiro, caso a inadimplência perdure por mais de noventa dias. Segundo este último código, o aluno não tem direito à prestação escolar se não cumprir a sua, que é de pagar a prestação devida. O seu desligamento por inadimplência, todavia, somente poderá ocorrer ao final do ano letivo ou, no ensino superior, ao final do semestre letivo quando a instituição adotar o regime didático semestral. (Art. 6º, § 1º, da Lei nº 9.870, de 23 de novembro de 1999). Dispõe ainda o Código de Defesa do Consumidor, no seu art. 39, ser vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: “VII – repassar informação depreciativa, referente a ato praticado pelo consumidor no exercício de seus direitos.
Todas essas disposições legais tornam a criação do referido cadastro um ato abusivo da parte do estabelecimento de ensino e, como tal, deve ser coibido.
Sobre ser abusiva, essa atitude, que atinge a honra, a dignidade, a intimidade do aluno, pode afetá-lo psicologicamente, de modo a dificultar o seu rendimento escolar, além de ferir o seu direito subjetivo à educação, o que interessa não só a ele, mas também a toda a sociedade.
Quanto a medidas que as instituições de ensino, eventualmente prejudicadas pelo inadimplemento dos seus alunos, poderiam tomar, além das legais já referidas, não disponho de elementos que me habilitem a emitir opinião. Sei que a criação do cadastro mencionado é inadmissível, não se podendo assemelhar o inadimplemento escolar ao que permite a inscrição do nome do devedor no SPC ou no SERASA. Os bens jurídicos em questão são diversos.