Edição 320 17 de novembro de 2010
O livro Indústria da Música em Transição é destinado aos estudantes, pesquisadores, autoridades, lideranças, jornalistas e aos interessados em se aprofundar sobre os desafios enfrentados pela Indústria da música brasileira e global e suas alternativas de recuperação. A obra, de autoria de Micael Herschman, doutor em Comunicação pela UFRJ, tem 184 páginas e chega agora à sua nona publicação.
O livro de Micael Herschman aborda o processo de transição da Indústria da música em quase todo o mundo. Analisando as mudanças na estrutura de sua cadeia produtiva, como a resistência dos consumidores em pagar pelos fonogramas, a redução do cast de artistas e a crise da noção do álbum, que vai deixando de ser a questão central na dinâmica de produção e consumo desta indústria.
O professor destaca também o desaparecimento de antigas funções no setor e, ao mesmo tempo, o surgimento de novas profissões que empregam especialmente as novas tecnologias, chegando à conclusão de que a Indústria da música se transformou em uma espécie de “laboratório”, devido às transformações que já afetam os diferentes setores das indústrias culturais. Para saber mais sobre a obra e sobre o processo de transição da indústria musical o Olhar Virtual entrevistou Micael Herschman.
Olhar Virtual: Como foi organizado o livro?
Micael Herschmann: No meu livro recém-lançado, Indústria da música em transição, (que conta com apoio da Fundação de apoio à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro), foram reunidas reflexões elaboradas especialmente nos últimos três anos a respeito do processo de crise, de transição e reestruturação da indústria da música, que tem mobilizado, de forma dramática, os profissionais que direta e indiretamente atuam no setor da produção cultural. O livro traça o seguinte percurso: a) no primeiro capítulo é apresentado não só o quadro conceitual, mas também as estratégias metodológicas que vêm sendo empregadas pelo autor nos seus estudos da indústria da música (apresentam-se tópicos importantes de sua agenda de investigação); b) no segundo, analisa-se – de forma sintética – a profunda crise do setor e as mudanças positivas que vêm ocorrendo na indústria da música na última década devido à emergência de novos negócios fonográficos e da música ao vivo; c) o último capítulo é dedicado a analisar o crescimento do mercado da música, que gira em torno dos concertos ao vivo nos centros urbanos (alguns localizados estrategicamente em corredores culturais de algumas cidades), especialmente os dados que indicam a expansão da chamada “indústria independente” no Brasil (nesta seção, por exemplo, é problematizado o crescimento dos shows avulsos, dos festivais independentes e dos concertos realizados de forma mais sistemática em cenas e circuitos musicais). A indústria da música, no inicio do século XXI constitui-se – de certa maneira - em uma espécie de “laboratório” para observar as transformações, que já estão começando a afetar todos os setores das indústrias culturais.
Olhar Virtual: Qual foi seu objetivo com esta obra?
Micael Herschmann: Esta publicação analisa o setor da música como um todo, trazendo informações relevantes e reflexões fundamentais para o entendimento deste momento de profunda transição. Assim, tendo em vista o conturbado contexto atual em que atores tradicionais e novos tecem alianças e enfrentamentos, o livro faz um balanço dos dois tipos de negócios emergentes, os quais ganham relevância, hoje, pela sua importância na reestruturação da indústria da música: o de fonogramas digitais (vendidos e/ou acessados através da web, telefonia celular, videogames e/ou plataformas multimídia) e o das atuações musicais ao vivo (no qual se pode atestar o crescimento expressivo de shows realizados em circuitos, cenas e festivais independentes).
Olhar Virtual: Quais são as características desse processo de transição da indústria da música?
Micael Herschmann: Dois aspectos saltam aos olhos e explicariam o êxito desses negócios emergentes. Por um lado, o fato de vários deles estarem articulados a experiências musicais espetacularizadas e valorizadas pelos consumidores (nessas situações nota-se a construção de “paisagens sonoras” que encantam os fãs) e que promove invariavelmente sentimentos de pertencimento a grupos sociais e fortalecimento de processos identitários; e, por outro lado, mais do que o barateamento do custo de acesso ao fonograma, algumas empresas de sucesso vêm se colocando em sintonia (em certo sentido “fazendo as pazes”) com a lógica das trocas de arquivos que predomina na internet, isto é, alguns intermediários do mercado vêm permitindo a socialização de parte dos conteúdos aos usuários. Como os leitores terão a oportunidade de constatar neste livro, parte-se do pressuposto de que estes aspectos são importantes, mas não necessariamente devem estar incorporados a dinâmica para que um negócio obtenha êxito num mercado da música cada vez menos massivo e complexo.
Olhar Virtual: Você é a favor dessa transição? Por quê?
Micael Herschmann: Não se trata de ser ou não a favor da transição. As mudanças já estão acontecendo desde o final da década de 1990. Na realidade, já há alguns anos assiste-se a um processo de transição da indústria da música em quase todo o globo. Presenciam-se mudanças significativas na estrutura da sua cadeia produtiva: dentre as muitas alterações, constatamos, com grande perplexidade, por exemplo, a “resistência” dos consumidores em pagar pelos fonogramas a redução do cast de artistas e do quadro de funcionários das grandes empresas; a crise da noção de álbum que vai deixando de ser o objetivo central desta indústria ou a mercadoria mais valorizada nesta dinâmica de produção e consumo; ao desaparecimento de antigas funções no setor e, ao mesmo tempo, ao surgimento de novas profissões que empregam especialmente as novas tecnologias. Em função de certo ineditismo e relevância destas mudanças, poder-se-ia dizer que a indústria da música, no início do século XXI constitui-se – de certa maneira - em uma espécie de “laboratório” para observar as transformações que já estão começando a afetar os diferentes setores das indústrias culturais.
Olhar Virtual: Como você acredita que a “Era Digital” influenciou neste processo?
Micael Herschmann: Essas transformações na indústria da música estão relacionadas em grande medida à emergência de uma cultura ou uma “Era Digital”. Evidentemente, não se trata de ruptura completa em relação ao paradigma anterior, mas o largo emprego dos processos comunicacionais e das novas tecnologias vêm afetando de forma significativa a forma como organizamos e estruturamos a vida social hoje. Passado um momento de maior perplexidade dos profissionais da indústria da música, especialmente daqueles que trabalham nas grandes gravadoras (os que não foram demitidos ou que não optaram por sair do mainstream), é possível afirmar que este setor da produção cultural vem se reestruturando.
Olhar Virtual: Como você acredita que a Indústria da Música deve se reestruturar para se inserir no novo modelo?
Micael Herschman: Na realidade, a tradicional indústria que teve grande êxito ao longo do século XX já está se reestruturando e se encontra mais receptiva a estas mudanças. O início da década de 2010 representou um recomeço – um turning point - no qual a grande indústria de certa maneira tenta “fazer as pazes” com a cultura digital, isto é, as pequenas e grandes empresas buscam cada vez se aproximar do internauta e da lógica das trocas (da socialização de conteúdos), reinante na web. Portanto, poder-se-ia dizer que é um momento de fortalecimento da indústria da música, especialmente em relação ao meio digital. Esse quadro é perceptível nas novas formas de vender ou acessar músicas, seja através de: sites P2P autorizados, pendrives, estações digitais (semelhantes a caixas eletrônicos), celulares, videogames etc.
Olhar Virtual: Por que do crescimento do mercado da música que gira em torno dos concertos ao vivo nos centros urbanos?
Micael Herschmann: Torna-se cada vez mais evidente que, em diferentes localidades do Brasil, vêm emergindo novos circuitos e cenas musicais independentes que estão alcançando expressivo êxito, mas que infelizmente ainda são casos pouco estudados. Poder-se-ia dar alguns exemplos, tais como o do samba e choro da Lapa (no RJ), do tecnobrega em Belém, da seresta em Conservatória, do axé em Salvador ou do forró em Fortaleza. Em outras palavras, há evidências de que os sinais de recuperação da indústria da música estão relacionados à experiência sonora presencial e merecem uma atenção especial do meio acadêmico, das lideranças, autoridades e poder público. Outro caso que chama a atenção no Brasil hoje é a expansão dos festivais indies. Com um perfil distinto dos festivais e concertos de música ao vivo promovidos pelas majors com grandes empresas nacionais e transnacionais, vem crescendo significativamente o número de festivais independentes no Brasil. Estes eventos estão organizados por iniciativa de coletivos de artistas, pequenas gravadoras e/ou produtoras e são realizados fora das grandes capitais. Analisando o êxito destes circuitos musicais, constata-se que o público se mobiliza especialmente pelas “afetividades”, isto é, os segmentos sociais organizados em grupos ou comunidades estariam fundados especialmente na “emoção”. Portanto, analisando o sucesso das execuções ao vivo ou mesmo de algumas iniciativas com fonogramas: nota-se que o público se mobiliza especialmente em função das experiências únicas e memoráveis geradas neste tipo de consumo, ou seja, são elas que tornam este conjunto de bens e/ou serviços economicamente sustentáveis.
Olhar Virtual: Quais são os Prós e contras desse crescimento?
Micael Herschmann: Na realidade, não se pode ainda falar de um contexto de crescimento, pois a indústria da música teve muitas perdas ao longo da última década e não conseguiu retomar o patamar em que os negócios se encontravam antes da crise. Contudo, os relatórios de mercado, divulgados no início da década de 2010, enunciam um quadro mais promissor: os números oficiais relativos ao faturamento de 2009 apresentaram uma melhora significativa (especialmente dos negócios fonográficos digitais) em relação ao do ano anterior. O segmento de consumo de fonogramas digital teve um crescimento de 12% e movimentou cerca de US$ 4,2 bilhões. Assim, o chamado mercado digital gerou no mundo receitas que representam 27% do total das vendas de músicas gravadas no globo. Apesar de ainda persistir a retração do mercado global, o crescimento das vendas, especialmente, digitais permitiu que treze mercados voltassem a crescer em 2009: dentre eles alguns importantes tais como Austrália, México, Coreia do Sul e Suécia. Se, por um lado, a crise da indústria promovida pelas majors do disco abriu um novo campo de ação para as iniciativas das indies e para produções oriundas do universo independente (os artistas e produtores independentes adquiriram uma condição de maior protagonismo); por outro lado, permanecem inúmeras inquietações, especialmente sobre o espaço neste novo mercado emergente dirigido a produção local. Por exemplo, poder-se-ia perguntar: quais são os efeitos desse novo contexto emergente (mais promissor para as majors) para a diversidade musical (brasileira)? Em 2009, a venda de música nacional representou uma fatia de 66% do mercado brasileiro (ABPD, 2010), índices que revelam uma pequena queda no percentual (que quase sempre oscilou entre 70 e 75%) do que representava a música local para este mercado, nas últimas duas décadas do século XX.
Olhar Virtual: Você pretende continuar analisando esse assunto? Um novo livro pode ser escrito?
Micael Herschmann: Sim, pretendo lançar outro trabalho no ano que vem. No momento estou desenvolvendo uma pesquisa sobre circuitos e cenas musicais do Estado do Rio de Janeiro e estou coordenando uma pesquisa sobre a indústria da música independente nacional. A ideia é realizar um seminário no segundo semestre do ano que vem e lançar um trabalho sobre as experiências musicais que vêm obtendo êxito e que têm como parâmetro outra cultura e/ou estruturas de negócio.