Edição 224 07 de outubro de 2008
Quando se fala em África, as aulas de História logo saltam à memória: pobreza, sofrimento, genocídio, escravidão. De fato, o continente sofreu reveses cruéis e tem de lidar, até hoje, com as conseqüências. Apesar disso, há muito mais a saber sobre a África. Há um mundo a ser descoberto, mundo de cultura, tradição, diversidade, luta e, claro, literatura.
Carmen Tindó, professora e pesquisadora da Faculdade de Letras (FL) da UFRJ, é uma das raras acadêmicas que se dedicam ao estudo das literaturas africanas, especificamente às de Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe, países cuja língua oficial é a portuguesa. Acostumados pelo sistema educacional a estudar apenas as literaturas brasileira e européia, a simples menção à tradição literária da África causa estranhamento até mesmo aos universitários – inclusive aos de Letras. Há muitos autores africanos, dentre os quais Luandino Vieira, Craveirinha, Mia Couto, Ondjaki, Agualusa, Maimona, Boaventura Cardoso, Manuel Rui, José Luís Mendonça, Jorge Barbosa, Mário Lúcio, Corsino Fortes e Paulina Chiziane.
A magia das letras africanas é um livro em que a professora Carmen Tindó busca despertar o prazer pela leitura e imaginação naqueles que estão iniciando seus estudos de letras africanas. Em entrevista ao Olhar Virtual, a pesquisadora forneceu maiores detalhes sobre a obra e, como não poderia deixar de ser, sobre seu objeto de estudo.
Olhar Virtual: Como surgiu a idéia de escrever A magia das letras africanas?
Em virtude de serem ainda reduzidas as publicações acerca das literaturas africanas, aqui no Brasil, resolvi reunir em livro meus artigos apresentados em congressos e análises minhas usadas em aulas na UFRJ, desde 1993.
Olhar Virtual: A literatura africana é bastante desconhecida no Brasil. A senhora vinha percebendo alguma carência de literatura específica para os estudos africanos?
Na verdade, não há uma Literatura Africana apenas, já que a África é um continente múltiplo, formado de muitos países, cada um com suas literaturas. Na UFRJ trabalho apenas com 5 literaturas africanas, as dos países que falam português: Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe.
Conforme a idéia de publicar A magia das letras africanas, há ainda esta certa escassez de ensaios críticos sobre literaturas africanas. Embora, nos últimos dez anos, algumas obras tenham sido publicadas e, hoje, com a Lei que criou a obrigatoriedade do ensino da temática africana, muitas editoras venham se interessando em editar obras sobre África.
As literaturas africanas de língua portuguesa são ainda jovens, têm aproximadamente, 160 anos de existência. Apesar de os primeiros textos datarem da segunda metade do século XIX, só no século XX, na década de 30, em Cabo Verde (com Claridade), e nos anos 50 em Angola (com Mensagem), é que essas literaturas começaram a adquirir maioridade, se descolando da literatura portuguesa, trazida como paradigma pelos colonizadores. Embora não se tenham desenvolvido sempre em conjunto, devido aos seus respectivos e diferenciados contextos sócio-culturais, essas literaturas são, geralmente, estudadas, nos meios universitários ocidentais, sob denominação abrangente, que envolve a produção literária de Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe, ex-colônias de Portugal na África. O ideal é que essas literaturas fossem trabalhadas individualmente: Literatura de Angola, de Moçambique, de Cabo Verde etc. Entretanto, isso demandaria um número grande de professores, o que é outro problema, pois há uma carência imensa de docentes especializados nessa área de estudos aqui no Brasil.
Olhar Virtual: Qual é o objetivo da obra?
A magia das letras africanas traz ensaios sobre obras das literaturas de Angola e Moçambique e se apresenta como um conjunto de exercícios literários, de modos produtivos de exegese textual, através dos quais práticas de interpretação literária são veiculadas, com o intuito de incitar, nos que se iniciam nos estudos das letras africanas, o prazer de ler, o gosto de imaginar. Esclarecemos que nossas análises dos textos não se colocam, de modo algum, como modelos, mas como uma das muitas vias possíveis de leitura.
Olhar Virtual: Há preconceito no meio acadêmico quanto aos estudos africanos?
Infelizmente, em alguns aspectos e áreas, ainda há sim. Isso se deve, na minha opinião, ao fato de essas literaturas terem-se afirmado no bojo do processo revolucionário marxista que libertou Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe, além do racismo, das marginalizações e exclusões contra os negros, que censuraram o ensino das literaturas africanas por muito tempo no Brasil. Mas, com a Lei 10.639 e todo o trabalho que desenvolvemos durante 15 anos na Faculdade de Letras da UFRJ, em nossa Unidade esses preconceitos diminuíram sensivelmente. Contudo, a discriminação em relação às literaturas africanas se revela pela ausência de uma política sistemática de concessão de vagas para concursos públicos para Professores de Literaturas Africanas na UFRJ. O nosso Setor de Literaturas Africanas só conta com duas docentes efetivas e um substituto. Há necessidade de mais docentes.
Olhar Virtual: Quais foram os desafios enfrentados para a elaboração de A magia?
Escrever foi um prazer, daí o título que dei à obra: A magia das letras africanas. Magia no sentido da sedução despertada por essas literaturas. Publicar é que foi difícil, em 2003, quando saiu a primeira edição. Agora, foi mais fácil, pois há um maior interesse editorial. Dei preferência à Editora Quartet, pois gostei muito do projeto da capa do livro: meninos em círculo, numa roda vida à espera de ouvir as histórias.
Olhar Virtual: Quais são as principais características e as peculiaridades das literaturas africanas? Há alguma semelhança com a brasileira?
As características variam. Há muitos diálogos sim com a Literatura Brasileira. Guimarães Rosa, Drummond, João Cabral, Manuel Bandeira e muitos outros escritores brasileiros foram lidos em Angola, Moçambique, Cabo Verde e há uma forte presença deles em textos literários angolanos, moçambicanos, cabo-verdianos.
Sintetizando, observamos que, de um modo geral, sete paradigmas norteiam o desenvolvimento das literaturas africanas de língua portuguesa: o referente às origens (segunda metade do século XIX), cujos poemas se encontram colados à produção literária portuguesa; o relativo a uma fase intermediária de busca de identidade (primeiras décadas do século XX), em que as obras são ainda perpassadas por uma ambigüidade entre a pátria lusitana e a mátria africana; o que compreende o período de mergulho nas raízes africanas e de afirmação das respectivas nacionalidades (década de 30, em Cabo Verde, e década de 50 em Angola, Moçambique, São Tomé ); o correspondente à época das utopias libertárias, das lutas contra o colonialismo (década de 60); o que se refere à fase de “gueto”, período de intensa censura, em que, por terem muitos escritores sido presos, a poesia, apenas metaforicamente, faz alusões ao social, abordando temas universais e voltando-se para a sua própria construção e linguagem (final dos anos 60 e primeiros anos da década de 70); o que compreende os anos da pré e da pós-independência, quando voltam os temas sociais, as utopias revolucionárias, os textos celebratórios da liberdade; nessa época, surgem também narrativas que discutem a necessidade da reconstrução nacional (década de 70 e parte da década de 80); e, por fim, o que corresponde à fase atual de desencanto (final dos 80 e dos 90), em que a literatura reflete a falência dos antigos ideais fundados em um marxismo ortodoxo e aposta na resistência cultural, investindo na recuperação dos mitos e sonhos submersos no inconsciente coletivo desses povos.
Olhar Virtual: Que aspectos da literatura africana são abordados no livro?
Trabalho com poesia, ficção e pintura. Estudo questões sobre ficção e história, pós-colonialismo, racismo, memória, oralidades recriadas e o labor estético das obras literárias analisadas. Por meio de um jogo de desvelamento interpretativo, A magia das letras africanas se debruça sobre textos de escritores como: Luandino Vieira, Mia Couto, Manuel Rui e Boaventura Cardoso, entre outros. De outra parte, interpreta também textos poéticos de Agostinho Neto, José Craveirinha, Paula Tavares, Luis Carlos Patraquim, João Maimona, Arlindo Barbeitos, Virgílio de Lemos e Eduardo White, ainda entre outros – poetas que compõem o quadro canônico dessas literaturas. A estas leituras se vêm juntar as que lêem diálogos intertextuais com autores brasileiros como Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade, por exemplo. Há também o estudo de outro universo artístico, o da pintura, que se intersecciona com o da poesia. Quadros de renomados pintores de Angola e Moçambique – Jorge Gumbe, António Óle, Malangatana Valente ou Roberto Chichorro – tecerão teias de cores e movimentos com as palavras poéticas, elas também sempre cores e movimentos.
Olhar Virtual: Qual a importância das literaturas africanas hoje e quais lições podemos aprender com ela?
Essas Literaturas são importantes como quaisquer outras literaturas. Em minha opinião, nenhuma Literatura deve dar lições. O papel da arte não é lecionar, é, sim, ter qualidade estética e problematizar questões das mais variadas ordens (sociais, artísticas, existenciais e filosóficas). A literatura, segundo Habermas, “se cola à pele do real não para capitular diante dele, mas para dissolvê-lo por dentro”. Para mim, são importantes as obras literárias e artísticas que me fazem levantar os olhos do papel e refletir sobre a vida. Nesse sentido, muitos textos africanos me fizeram pensar criticamente sobre a importância dos velhos, da oralidade, da história e da memória, da arte e da linguagem literária. Outros textos me levaram a rever criticamente o pós-colonialismo, o colonialismo, o racismo, a escravidão, as atuais políticas neoliberais que impõem novas formas de colonialismo à África e a outros continentes.