Edição 175 11 de setempro de 2007
“Enquanto a cidade dorme, a Lapa fica acordada, acalentando quem vive de madrugada.” O trecho da música “A Lapa”, composta por Herivelto Martins e Benedito Lacerda, em 1949, e interpretada por Francisco Alves, faz referência à Lapa dos anos 1950, marcada pelo samba e pela malandragem. Reduto da boemia carioca, o bairro fez história ao acolher e inspirar renomados artistas da música popular brasileira.
Nas décadas posteriores, no entanto, abandonada pelo governo e pela iniciativa privada, a região da Lapa, localizada no Centro do Rio de Janeiro, sofreu um forte processo de decadência. As rodas de samba bem como o interesse do público só voltaram a fazer parte do cotidiano do bairro carioca na década de 1990, em especial, a partir da criação do Distrito Cultural da Lapa (2000) e da restauração dos prédios antigos da região.
Hoje, fala-se em uma Lapa revitalizada. O samba divide espaço com o hip-hop, com o reggae, com o rock’n roll, com a música eletrônica. Casas de espetáculos, bares e atividades culturais atraem jovens de variadas idades e perfis socioeconômicos distintos. Essa efervescência cultural levou Micael Herschmann, coordenador do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura da Escola de Comunicação (ECO/UFRJ), a escrever o livro Lapa, cidade da música.
No livro, lançado às 19h desta terça-feira (11), pela editora Mauad, no Rio Scenarium, Micael analisa o ressurgimento da Lapa como referência musical da cidade e, a partir dessa experiência, reflete sobre a crise e as alternativas para a indústria da música e para o Estado do Rio de Janeiro.
Em entrevista ao Olhar Virtual, o autor comenta aspectos que distinguem o bairro de outros pontos culturais brasileiros, enfatiza a importância do passado histórico para o atual sucesso da Lapa, além de apontar necessidades de mudanças na gestão das políticas públicas de Cultura do país. Confira:
Olhar Virtual: Que singularidades da revitalização da Lapa a diferenciam do processo de recuperação de outros locais que também concentram atividades musicais e culturais, como o Pelourinho, por exemplo?
Micael Herschmann: O Pelourinho na Bahia, assim como o Reviver em São Luís do Maranhão, são importantes espaços culturais recuperados por iniciativa do Estado. A novidade da revitalização da Lapa é ela acontecer pela vontade da iniciativa privada. Foi a atuação pioneira da Associação dos Comerciantes do Centro do Rio Antigo (Accra) que conseguiu articular outros atores sociais importantes, tais como artistas, produtores culturais, freqüentadores e jornalistas (e outros formadores de opinião). Assim, desde meados dos anos 1990, a região vem se reestruturando. O Estado, até o momento, praticamente não interferiu nesse processo. Na Lapa, ao contrário de muitos locais revitalizados pelo Estado, os atores sociais se sentem protagonistas do processo de recuperação, diga-se de passagem, só se tornou possível por causa da união, do associativismo desses atores em torno de um interesse comum. Curioso é observar que várias das áreas revitalizadas do país não gozam de tanta efervescência cultural como a Lapa. Ou seja, a Lapa é, infelizmente, um caso raro na história cultural de uma sociedade acostumada a ser paternalizada ou abandonada pelo poder público.
Olhar Virtual: A Lapa é apontada no livro como a “cidade da música de coração” dos cariocas. Que tradições e hábitos culturais locais, na sua opinião, o bairro possui para ser digna desse título?
Micael Herschmann: A Lapa faz parte da tradição, da história cultural da cidade e do país. É um bairro historicamente identificado com a boemia, com a vida noturna. Há, de fato, uma evocação do passado da Lapa a legitimar a região, a reconstruir uma imagem do lugar no imaginário social – como um espaço cultural importante da cidade. Mas, ao afirmar que a Lapa é a “cidade da música de coração” dos cariocas, faço, no meu livro, uma provocação com o projeto da Cidade da Música na Barra da Tijuca, local em construção e dedicado basicamente à música clássica. Não tenho nada contra a música clássica, mas sou contra o princípio autoritário regente deste projeto: de que o Estado tradicionalmente siga decidindo o que fazer com o dinheiro público, sem consultar a população, baseando-se apenas em uma lógica tecnocrática e autoritária. Repete-se uma situação bastante recorrente na história do Brasil: de um lado a lógica do Estado e de outro a “sabedoria popular”. Todos sabem, a cidade da música já está em funcionamento e fica na Lapa.
Olhar Virtual: Quais os principais obstáculos vividos atualmente pelo circuito cultural do samba e do choro no bairro da Lapa?
Micael Herschmann: Evidentemente, a Lapa já é um sucesso. Mas ainda se busca soluções mais adequadas para problemas estruturais de iluminação, segurança, banheiros públicos etc. Estes problemas tendem, inclusive, a se agravar com grande fluxo de pessoas que converge todas as semanas para a localidade. Ou seja, o Estado não apoiou no início, mas pode colaborar agora e equacionar alguns obstáculos que ainda dificultam um maior desenvolvimento da região. Apesar dos desafios, cabe ressaltar, a Lapa hoje em função da integração das atividades culturais, turísticas e gastronômicas, está estruturada na forma de um importante pólo da cidade. Acredito a região será cada vez mais considerada pelo poder público e pela a população como uma espécie de vitrine cultural, capaz de gerar empregos, desenvolvimento e atrair investimentos para a cidade.
Olhar Virtual: No livro, o sr. avalia a capacidade de os fatores comunicacionais e culturais gerarem desenvolvimento local sustentável para a Lapa. Nesse sentido, podemos afirmar que a revitalização do bairro trouxe melhores condições de vida para os moradores da região?
Micael Herschmann: A recuperação criou uma percepção e imagem positiva da região, antes era vista como degradada. Hoje, as pessoas estão voltando a morar na Lapa e no Centro do Rio. Anos atrás, esse bairro era tido apenas como um local de trabalho. Além disso, empresas de micro, pequeno e médio porte começam a elaborar uma série de empreendimentos culturais e gastronômicas desenvolvidos em torno da música. Isso passou a gerar empregos. Em dados coletados na minha pesquisa, pude atestar um aumento de 20% na oferta de empregos na região, nos últimos anos. A revitalização desta localidade está alavancando não só o desenvolvimento sustentável do bairro, mas também está gerando impactos positivos para a cidade do Rio de Janeiro com um todo. Infelizmente, os pesquisadores e autoridades tendem a avaliar estratégias de desenvolvimento local apenas para o contexto de pequenas cidades e não o de grandes metrópoles. Acredito que este seja um desafio crucial a ser enfrentado hoje no Brasil.
Olhar Virtual: O livro, além da análise do reflorescimento cultural da Lapa, pretende também refletir sobre as políticas públicas (especialmente culturais). Quais são, na sua opinião, as principais falhas da gestão da Cultura no Brasil?
Micael Herschmann: Durante muito tempo, artistas e autoridades não admitiam que Cultura fosse também uma mercadoria. Estes romantismo e purismo nos conduziram ao momento paradoxal vivido hoje no país. No livro, eu afirmo haver uma espécie de “miopia” dos gestores de Cultura, pois, infelizmente, ainda não somos capazes de perceber na Cultura uma atividade econômica importante. Não é apenas um gasto, mas uma oportunidade de crescimento local e nacional. Ressalto que a música brasileira é de certa forma unanimidade, nacional e internacional; pode ser capitalizada para gerar desenvolvimento num mundo globalizado. Entretanto, as políticas públicas precisam ser mais efetivas e democráticas, observando especialmente os interesses locais e coletivos. É imprescindível à sociedade se sentir protagonista das políticas públicas implementadas: o poder público precisa estabelecer canais de diálogo com os atores sociais e investigar as vocações e potenciais de cada região ou localidade. Em outras palavras, por um lado, as decisões que envolvem o setor cultural devem ser tomadas menos em gabinetes e mais em fóruns populares; por outro lado, é bem possível existir outras localidades do país com potencial de crescimento similar ao da Lapa. Precisamos urgentemente desenvolver pesquisas – básicas e aplicadas – capazes colaborar na reversão do quadro atual do Rio de Janeiro e do país. O Rio é um importante celeiro da produção audiovisual do país, mas infelizmente vive há décadas um contexto de decadência. A Lapa, um estudo de caso, tem muito a ensinar a autoridades, lideranças locais e pesquisadores do meio acadêmico.