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Edição 297      1º de junho de 2010


Olho no Olho

O comprimido da liberdade

Aline Durães e Ana Carolina Correia

Ilustração: Caio Monteiro

Há 50 anos, um novo método anticoncepcional sinalizava o advento de uma sociedade com mulheres cada vez independentes. A pílula modificou a relação delas com o sexo, impactando em novas maneiras de vivenciar a sexualidade e buscar prazer. Hoje, mais de 80 milhões de casais ao redor do mundo fazem uso desse método para evitar a gravidez.

Ao ganhar o controle sobre o corpo, a mulher se viu diante da possibilidade de ter quantos filhos quisesse e, o mais importante, quando quisesse. Assim, as barreiras impostas pela natalidade e pelo mundo patriarcal puderam começar a ser derrubadas.

Mas, depois de cinco décadas do início da comercialização da pílula, ainda se discute sobre as dificuldades na expressão de sentimentos e desejos femininos, presas dentro de sociedade muitas vezes machista e misógina.  Para discutir o assunto, o Olhar Virtual conversou com a antropóloga Mirian Goldenberg e com a cientista política Anna Marina Bárbara, ambas do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ.

 

Anna Marina Bárbara

A pílula, sem dúvida nenhuma, foi um grande marco num processo de profunda renovação de costumes que se convencionou chamar de Revolução Sexual e vem ocorrendo em alguns lugares da Europa Ocidental e dos Estados Unidos, da segunda metade dos anos de 1960 para cá. Acredito ser um fenômeno tipicamente urbano e não me sinto confortável em designá-lo como revolucionário. Já a idéia de uma “revolução feminina”, ou de uma revolução do feminino que há em todos nós, independente de sermos mulheres ou homens, e de nossas orientações sexuais, é uma grande e bela utopia, que ainda não se efetivou em nenhum lugar do mundo, embora possa estar presente no horizonte de nossos desejos. 

O que a pílula, realmente, propiciou às mulheres foi a possibilidade de dissociar sexo de reprodução, uma grande conquista, não só em termos de planejamento familiar, mas de usufruto do prazer sexual sem a ansiedade gerada pelo risco de uma gravidez indesejada. Em sociedades que responsabilizam mais as mulheres que os homens, pela reprodução e pelo cuidado com as crianças, essa é uma conquista que não pode ser desprezada.


uma revolução do feminino que há em todos nós, independente de sermos mulheres ou homens, e de nossas orientações sexuais, é uma grande e bela utopia, que ainda não se efetivou em nenhum lugar do mundo, embora possa estar presente no horizonte de nossos desejos.


 Quanto ao processo de reivindicação de direitos e organização coletiva em movimento social é bem anterior a pílula; a primeira onda de movimentos feministas no Ocidente data do início do século XX, e embora na segunda onda, que ocorre a partir da segunda metade da década de 1960, a descoberta da pílula apareça associada à reivindicação por direitos individuais e autonomia, não devemos perceber essa associação de forma simplista, como uma relação de causa e efeito.

Já sobre a liberdade sexual, depende do sentido que se dê a expressão “liberdade sexual”. Se a utilizarmos para abranger os direitos sexuais, além das práticas, poderemos acabar percebendo que, em nosso país, por exemplo, a tal da liberdade sexual não existe para as mulheres, pelo menos, não da mesma forma que existe para os homens. Tivemos, há menos de um mês, a ocorrência de um “crime da mala”, no bairro do Leblon, zona sul do Rio de Janeiro: um assassinato motivado pela dificuldade do agressor em lidar com a rejeição por uma mulher, não qualquer uma, mas aquela que ele considerava sua. Isso para não falar nos estupros de adolescentes, em lugares supostamente seguros, freqüentemente, por agressores conhecidos das vítimas. Vejamos o que nos diz o noticiário nacional dos últimos meses: na madrugada do dia 24 de maio, uma menina de apenas 14 anos foi estuprada numa festa de debutantes, na cidade de Sorocaba, São Paulo. A vítima teve que ser submetida a uma cirurgia reparatória, tamanha a violência da agressão. E, em Joaçaba, Santa Catarina, outra adolescente, numa comemoração envolvendo apenas 10 pessoas, também foi estuprada quando, ao sentir-se mal, procurou um banheiro e, batendo com a cabeça, desfaleceu. Neste caso, a menina desmaiada foi estuprada por mais de um agressor, de idades próximas a sua, e as imagens do estupro foram veiculadas na Internet. Nenhum dos presentes chamou a polícia.

Enquanto coisas como essas continuarem a acontecer, não creio ser possível falarmos em liberdade sexual para as mulheres. Só podemos classificar como sexualmente livres as sociedades que não convivam com nenhuma forma de violência sexual.

 

Mirian Goldenberg


Antes da pílula, sexo e procriação estavam associados, o que significa que havia um grande medo da mulher em viver e buscar o próprio prazer sem a preocupação com uma possível gravidez. Uma série de mudanças comportamentais ocorreu nos anos 60 e 70 junto com a pílula. O feminismo, a psicanálise, a contracultura, a escolarização maior das mulheres, mais oportunidades de trabalho e, também, maior liberdade sexual. A mulher se tornou mais livre, mais consciente e mais informada sobre o próprio corpo e o próprio prazer. Leila Diniz, atriz brasileira que causou polêmica ao exibir sua gravidez de biquíni, representa bem essas mudanças que vieram junto com a pílula.

O maior impacto do comprimido é simbólico: mesmo as mulheres que nunca tomaram pílula passaram a viver sua sexualidade com maior liberdade e a buscar o prazer sem culpa. A pílula foi uma verdadeira revolução sobre o significado do prazer e do sexo para as mulheres. Elas aprenderam a se conhecer e a reivindicar seus direitos ao prazer. Deixaram de buscar apenas agradar os homens, deixaram de querer apenas serem desejadas para buscar o seu próprio desejo. Poucas mulheres faziam isso antes da pílula e eram muito estigmatizadas socialmente. São até hoje, apesar dos inegáveis avanços sociais.

A liberdade trazida pela pílula não é total, entretanto. Quando pergunto para as mulheres do Rio de Janeiro o que elas mais invejam nos homens, elas respondem categoricamente: ‘liberdade’! Se tivéssemos liberdade plena, não precisaríamos mais invejar os homens nesse quesito. .

A liberdade trazida pela pílula não é total, entretanto. Quando pergunto para as mulheres do Rio de Janeiro o que elas mais invejam nos homens, elas respondem categoricamente: ‘liberdade’! Se tivéssemos liberdade plena, não precisaríamos mais invejar os homens nesse quesito. Por outro lado, quando pergunto aos homens o que eles invejam nas mulheres, eles respondem: ‘nada’. Essa resposta mostra muito bem a situação das mulheres em nossa cultura, mesmo nos dias de hoje.

Precisamos de novos avanços que possam causar impactos como os da pílula. Aqui no Brasil, por exemplo, necessitamos lutar pelo direito ao aborto e por uma maior igualdade entre homens e mulheres, tanto nos relacionamentos conjugais quanto no mercado de trabalho. Estamos longe dessa igualdade e de receber o respeito que merecemos. Muito longe!

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