Edição 214 29 de julho de 2008
Entre os dias 25 e 27 de junho, a cidade de Curitiba recebeu o evento “Anistia e Democracia − Direito à Memória e à Verdade”. Organizada pelo Grupo Tortura Nunca Mais/PR, a iniciativa reuniu militantes, ex-presos políticos, autoridades, representantes do governo e ONGs com a finalidade de promover um amplo debate acerca da repressão ocorrida durante o regime militar brasileiro e da importância da anistia para o Estado democrático.
O encontro foi fortemente marcado por manifestações em defesa da revisão histórica do passado do país. No segundo dia de debates, Perly Cipriano, subsecretário de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos da Presidência da República, e Nilmário Miranda, ex-secretário especial de Direitos Humanos, discutiram o tema “Direito à Memória e à Verdade” e discursaram a favor da abertura dos arquivos da repressão e da responsabilização dos torturadores da época da Ditadura. Além disso, a Caravana da Anistia — projeto criado pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça em abril deste ano com o objetivo de contribuir para o resgate, o debate e a reflexão sobre a história brasileira através de passagens por todos os estados brasileiros e países da América Latina até 2010 — ainda realizou, no encerramento do evento, o julgamento de processos de perseguidos políticos paranaenses e homenageou personalidades que se empenharam na luta contra o autoritarismo do regime.
Apesar de mobilizações como essa, na mídia, pouco se observam demonstrações de pressão ao governo federal pela abertura dos arquivos da ditadura. De acordo com Carlos Fico, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS/UFRJ), isto se deve ao fato de que a democracia brasileira não depende da punição dos que praticaram atos de tortura durante a ditadura militar.
— Creio que a democracia brasileira está consolidada, como demonstram uma série de episódios, especialmente a sucessão de eleições presidenciais sem turbulências e com grande nível de debate; o grande vigor das comissões parlamentares de inquérito do Congresso Nacional que, apesar dos inevitáveis “desvios”, têm sido muito importantes para a depuração institucional; o processo que culminou na renúncia do ex-presidente Fernando Collor de Melo; o papel recente do Supremo Tribunal Federal (STF); a criação do Ministério da Defesa que, finalmente, iniciou o processo de subordinação dos militares pelos civis, entre outros exemplos — examina.
No entanto, Fico avalia de forma positiva o questionamento feito sobre a Lei de Anistia, que, segundo o professor, só terá sua constitucionalidade revista pelas autoridades se houver pressão da sociedade. “É possível que a Lei de Anistia, de 1979, que supostamente perdoou os que praticaram atos de tortura e outros crimes em geral imprescritíveis, tenha sua constitucionalidade questionada junto ao STF caso haja uma iniciativa nesse sentido e especialmente se tal iniciativa contar com apoio político significativo. Portanto, tal iniciativa depende, sobretudo, de uma mobilização social, e não da abertura de arquivos, até porque torturadores não costumam registrar seus atos em documentos”, acredita.
O historiador ainda acrescenta que, hoje, muitos arquivos produzidos pelo governo militar já tiveram seu conteúdo divulgado e estão disponíveis para consulta; são utilizados inclusive em pesquisas realizadas pelo Grupo de Estudos sobre a Ditadura Militar (GEDM/IFCS), coordenado por ele. “É preciso não esquecer que os acervos documentais brasileiros sobre o período da ditadura já são bastante expressivos. Entre os que não foram abertos estão os do Centro de Informações do Exército (CIE), do Centro de Informações da Aeronáutica (CISA) e do Centro de Informações da Marinha (CENIMAR). Entretanto, é preciso reconhecer que os presidentes Fernando Henrique Cardoso e Lula tiveram atuação importante no que se refere à liberação de acervos documentais, apesar de terem retrocedido em relação aos prazos de classificação dos documentos sigilosos”, afirma Fico, lembrando que quem quiser conhecer os vários arquivos já abertos pode acessar uma listagem no site do GEDM (www.gedm.ifcs.ufrj.br).
Desta forma, o professor considera que, mais importante do que pressionar pela abertura dos acervos ainda mantidos em sigilo, é que as vítimas da ditadura acusem os torturadores e iniciem processos na Justiça, como no caso da ação declaratória contra o coronel Brilhante Ustra.
— A idéia de que documentos secretos, ainda não divulgados, possam servir para identificar torturadores é um pouco ingênua. Aliás, o mesmo pode ser dito sobre a esperança de que documentos indiquem a localização dos corpos dos que foram mortos no Araguaia. Trata-se muito mais de uma disputa política pela memória e pela verdade do que uma questão a ser resolvida tecnicamente pela Justiça com provas materiais. Há um aspecto delicado que comprova o que digo: a demanda pela punição de torturadores pode suscitar outra ação equivalente, qual seja, o pedido de punição para ex-militantes de esquerda que praticaram “justiçamentos” ou assassinatos de militares estrangeiros. Nada é simples quando se trata do enfrentamento histórico de episódios traumáticos — finaliza.