Edição 171 14 de agosto de 2007
Luísa R. tomou o primeiro gole de cerveja aos 20 anos. No início, bebia para acompanhar o marido, mas, aos poucos, o álcool foi se tornando um costume diário. Depois da separação traumática, decorrente do alcoolismo de seu companheiro que, por inúmeras vezes, chegou a agredi-la fisicamente, e de sucessivas experiências amorosas fracassadas, Luísa mergulhou no vício. Ela conta que largou o emprego em uma loja na zona sul do Rio de Janeiro e deixou de cuidar dos três filhos para passar dias inteiros em bares. Foram 30 anos de dependência, marcados por momentos depressivos, crises de agressividade e sentimentos de degradação moral. Luísa, hoje com 60 anos, não ingere bebida alcoólica há dez, mas ainda se ressente do tempo perdido.
Casos como o de Luísa são cada vez mais comuns. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostram que o número de mulheres alcoólatras no mundo triplicou nos últimos anos. Se há uma década a proporção dos casos de alcoolismo era de dez homens para cada mulher, hoje, ela é de dez homens para um grupo de sete mulheres doentes pelo álcool. Somente no estado de São Paulo, no período de 2004 a 2006, o atendimento de mulheres alcoólatras em serviços especializados para dependentes cresceu 80%.
Elas se viciam mais rápido do que eles, dizem os especialistas. Estudos evidenciam que o organismo feminino, por ter menos água e mais gordura, absorve 30% a mais de álcool que o masculino. Enquanto um homem precisa beber por 15 anos para desenvolver a doença, uma mulher que ingira bebidas alcoólicas regularmente se torna dependente em um prazo de cinco anos.
Não é apenas no âmbito biológico que o alcoolismo feminino difere do masculino. Aspectos sociais e comportamentais também imprimem distâncias entre o vício em homens e mulheres. Para comentar as peculiaridades da dependência feminina, o Olhar Virtual entrevistou Magda Vaissman, psiquiatra da Unidade de Problemas Relacionados a Álcool e outras Drogas (Uniprad) do Hospital-Escola São Francisco de Assis (Hesfa/UFRJ). Como contraponto à opinião da psiquiatra, Mirian Goldenberg, antropóloga do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), enumera alguns fatores que impulsionam a mulher contemporânea a beber mais e discorre sobre os preconceitos sofridos pelas dependentes de álcool. Confira:
“Os estragos causados pelo álcool são maiores no organismo feminino do que no masculino, pois o álcool induz muito facilmente a mulher à depressão e a estados ansiosos. Se ela possuir pré-disponibilidade genética, pode, por exemplo, manifestar processos de pânico, de fobia social e transtornos de humor como decorrência do uso abusivo de álcool.
O comportamento de uma mulher alcoolizada também guarda distâncias do comportamento masculino. Na maior parte dos casos, as mulheres sob influência do álcool apresentam super excitação sexual, além de se tornarem verbalmente agressivas, ao contrário do homem, que explode em atos de agressividade física.
O alcoolismo feminino, assim como o masculino, é multifatorial. Variadas motivações podem levar uma mulher a se viciar em álcool. Muitas esposas, por exemplo, bebem para acompanhar o seu marido, mas também é razoável o número de mulheres de meia-idade que começam a beber para se distrair, como forma de lidar com a solidão e com a ausência de um companheiro.
O vício feminino, ao contrário do masculino, é solitário. As mulheres, por serem muito mais discriminadas, bebem sozinhas e em casa. Geralmente, elas escondem isso da família, tanto que é comum filhos e maridos acharem garrafas de bebidas escondidas pela casa, debaixo de camas e dentro de armários.
Outro dado que diferencia o comportamento do homem e da mulher frente ao álcool é a busca por tratamento. A mulher alcoólatra tem iniciativa para procurar ajuda; ela vem sozinha; vem porque quer. Não é o homem que traz. A razão para isso é que a mulher preza mais a saúde. Apesar de recair mais, ela luta contra isso.”
“Um primeiro fator que pode explicar os motivos para a procura feminina por álcool é a atual situação da mulher contemporânea: ingressou no mercado do trabalho, competindo por posições de prestígio, tendo que sustentar a família, cuidar da casa, dos filhos e, ainda, preocupada em se manter jovem, magra e bonita. As pressões sociais sobre a brasileira nunca foram tão grandes e ela é muito exigente consigo mesma e com seus parceiros amorosos.
É muito difícil resistir equilibradamente a tanta pressão, que é externa mas, também, tem aspectos internos. A mulher brasileira nunca foi tão livre e realizada no mercado de trabalho, mas está muito longe de uma situação de igualdade e de respeito. A insatisfação feminina leva ao consumo de álcool, drogas, antidepressivos, excesso de comida entre tantos outros efeitos nocivos.
Não acredito, no entanto, que o preço da emancipação é o alcoolismo, a depressão e a insatisfação. Lógico que estes fatores existem e devem ser levados em consideração. Mas a emancipação também trouxe um leque maior de escolhas para a brasileira, uma vida mais digna, uma felicidade maior com seus amigos e, também, no trabalho.
Importante destacar que a mulher brasileira ainda é muito cobrada para assumir o papel de esposa e mãe. Seu comportamento é muito mais controlado socialmente, em todos os níveis. A mulher que bebe foge totalmente das expectativas sociais e destrói a imagem idealizada da brasileira, responsável pela casa, pelos filhos, pela família. A mulher no Brasil é vista como aquela pessoa que mantém a família unida, que ensina o que é certo e errado, que é mais madura e responsável do que o homem. A alcóolatra quebra com todas essas representações e se coloca muito mais próxima do papel masculino em nossa cultura. Ela desorganiza os papéis de gênero e uma das bases fundamentais de nossa cultura: a família.
Para mim, o mais importante é perceber que as atuais expectativas de perfeição para a mulher brasileira, em todos os níveis, têm trazido muita insatisfação e, também, novas patologias sociais. Não só o alcoolismo, mas também a anorexia, a depressão, a bulimia, a insônia, podem ser vistas como patologias decorrentes da nova posição da mulher na sociedade brasileira."
Onde procurar ajuda?
A Unidade de Problemas Relacionados a Álcool e outras Drogas (Uniprad/UFRJ) atende dependentes químicos de ambos os sexos, gratuitamente, todas as quintas-feiras, a partir das 9h. Depois de passar pela avaliação inicial de uma equipe multidisciplinar, composta por um médico, um enfermeiro e um assistente social, o paciente é encaminhado para as reuniões em grupo.
A Uniprad, que baseia seu trabalho no tripé diagnóstico, tratamento e reinserção social, disponibiliza também grupos de apoio para familiares de dependentes químicos. A Uniprad fica localizada na Av. Presidente Vargas, nº 2863, Cidade Nova (próxima ao metrô Praça Onze).