Edição 172 21 de agosto de 2007
“Nunca a destruição, mas a moderação. Não o excesso, mas o equilíbrio, a medida, a ocasião apropriada, os modos. Por isso, o uso dos prazeres requer um saber dos prazeres, um saber que pode regulá-los de acordo com o melhor. Os prazeres podem ser uma força perturbadora, mas apenas quando estão sem rédea, sem comando, sem seu cocheiro, para usar mais uma metáfora platônica”.
Arqueologia dos Prazeres é o mais recente livro de Fernando Santoro, professor do Departamento de Filosofia da UFRJ, que resgata a discussão acerca das relações dos prazeres entre os filósofos gregos.
Para saber mais sobre o livro confira abaixo o papo com o autor.
Em seu livro Arqueologia dos Prazeres, você comenta que os gregos associavam os prazeres ao sofrimento. E hoje, a cultura ocidental associa o prazer a que?
Quando digo que os gregos associavam o prazer ao sofrimento isso quer dizer primeiro que o sofrimento e o prazer ocupam o mesmo campo de problematização moral referente à realização de uma vida humana virtuosa e feliz. Mas esta associação é mais íntima do que a natural associação entre dois opostos. Significa que em muitos casos a proximidade alcança a própria ambigüidade: prazeres que trazem dor, dores que trazem prazer; e é justamente nesse campo da ambigüidade que o saber filosófico é mais requisitado, porque deixam de valer distinções infantis e o campo da construção dos valores e dos sentidos da existência entram em jogo, abrindo espaço para a liberdade e a autenticidade. Os códigos morais gregos não visavam padronizar os homens sob regras de conduta, mas antes possibilitar que os indivíduos construíssem um estilo de vida coerente com si mesmos. Hoje, o prazer não é visto como um valor no campo da construção da liberdade, mas antes como uma experiência de consumo. Consumo tanto dos objetos, quanto dos que os usufruem. Mesmo os prazeres oriundos dos objetos que, naturalmente, se consomem, como bebidas e comidas, eram vistos pelos gregos não pela lógica do consumo, mas da repleção. De modo que acreditavam que o prazer era alcançar uma plenitude, e não gastar ou gastar-se. Mas estes prazeres eram também considerados mais vulgares. Os prazeres dos grandes mestres gregos associavam-se mais à atividade do que à passividade: a amizade, o amor, o refinamento da sensação, a própria filosofia eram vistas como as atividades mais prazerosas. O consumismo contemporâneo tende a esvaziar o prazer da vida e o próprio gozo dos objetos. Por isso, é sempre urgente repensar o que significa para nós a felicidade, tanto no campo do exercício das virtudes, quanto no desfrute da vida. Para Epicuro, a sabedoria dos prazeres estava em encontrá-los à mão: figos, mel, uma fonte de água pura, a boa conversa entre amigos.
A indústria de consumo pode ser apontada como a principal responsável por fomentar desejos na cultura contemporânea? Você considera isso um risco proposital “oferecido” pelo regime capitalista?
A felicidade, o prazer, o gozo estão sempre ligados aos desejos. Muitos gregos, principalmente os cínicos e estóicos, mais moralistas, associam o desejo à dor. O desejo é conseqüência da falta, da carência. De modo que por mais riquezas que alguém possuísse, se seu desejo não era aplacado, ele continuava carente, e de um modo muito real era mais pobre do que alguém de poucos recursos, porém com poucas necessidades. Sócrates tornou esta equação mais complexa, vendo que o desejo, o amor, não eram apenas filhos de carência, mas também a expressão de um recurso vital que busca não apenas alcançar um bem, mas também gerar e produzir os bens. Tomados de desejos não ficamos apenas carentes de coisas belas, mas nos movemos para gerá-las. A lógica do desejo no capitalismo tem uma dimensão perversa porque a produção não se move para preencher as necessidades e os desejos; mas, inversamente, primeiro se produzem desejos e carências e depois a produção se move para supri-los. O capitalismo, quanto mais rico mais produz carência. E não estou falando da perspectiva marxista da mais-valia e da apropriação do trabalho. Estou pensando, justamente, no consumidor que possui recursos. Para ele, a engrenagem da propaganda produz uma carência infinita, que não pode nunca ser suprida, sempre há um novo supérfluo que é transformado em necessidade. Quem vive hoje sem um celular, sem uma televisão? No entanto, há poucas décadas estas necessidades sequer eram cogitadas de existir. O perverso do capitalismo é que até o rico se torna carente, como na dialética hegeliana do senhor e do escravo.
Como você vê a crítica da imprensa sobre o seu livro, especificamente? Em geral, as críticas são levianas?
Ainda não posso falar de críticas da imprensa, porque ainda não chegaram. As primeiras manifestações vieram de um campo fora da literatura e da filosofia, por conta do apelo do título. A imprensa que se mobilizou até o momento buscou no livro conteúdos eróticos ou de consumo, justamente! Mas não vai encontrar exatamente o que espera — afinal é um livro para se pensar, não para consumir. Apareceu uma matéria no caderno “Ela” do jornal O Globo, que tende a tratar as mulheres como as maiores consumidoras. O título era “Filósofo e Gato”; obviamente, o gato não era eu, mas o Chico Bosco que também está lançando um livro na coleção filosófica. O jornalista que tentou ler o meu livro, disse que era muito difícil, tinha palavras estranhas como “complexificar” (posso garantir que tem umas cem palavras mais estranhas do que essa, entre os conceitos morais dos gregos) e ficou insatisfeito porque a arqueologia só foi dos primórdios até Epicuro, ainda muito longínquo (sic).
Como surgiu a idéia de escrever Arqueologia dos Prazeres?
A idéia começou a ser gestada quando Mirian Goldemberg, professora de antropologia do IFCS, me propôs de ministrarmos um curso em conjunto, para estudantes de ciências sociais e de filosofia. Resolvemos preparar um curso sobre a História da Sexualidade de Michel Foucault, mais especificamente sobre o segundo livro “O Uso dos Prazeres”, que é uma obra que aborda os gregos para revirar alguns conceitos contemporâneos sobre a sexualidade, principalmente a idéia errônea de que o discurso sobre a sexualidade era resultado de uma liberação recente de temas recalcados até o séc. XIX. Montamos o curso, juntando duas turmas das duas faculdades e reunimos, de um lado, as pesquisas de Mirian sobre os discursos de sexualidade no Brasil atual e, de outro, as minhas pesquisas em torno das fontes gregas. O curso me empurrou para a literatura filosófica sobre o tema e acabei montando, na Casa do Saber, um mini-curso em seis lições que já se chamava Arqueologia dos Prazeres e foi a espinha dorsal do livro. O curso teve boa repercussão e a editora Isa Pessoa, da Objetiva, me convidou para abrir a sua coleção filosófica. Com isso, refugiei-me na montanha e escrevi a maior parte do livro neste verão, à beira agradável de um córrego...