Edição 241 17 de março de 2009
São Tiago, apóstolo de Jesus Cristo. San Millán de la Cogolla, eremita do século V. Santo Domingo de Silos, sacerdote que viveu na Espanha por volta do ano 1030. Esses são os três santos que deram origem aos relatos analisados no livro Reflexões sobre a Hagiografia Ibérica Medieval.
Na obra, que será lançada ainda este mês, Andréia Frazão, professora do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ, lança luz sobre a Hagiografia, isto é, a biografia dos santos. Através de um estudo comparativo dos relatos escritos por hagiógrafos letrados ligados à Igreja Católica, a pesquisadora mostra que, embora possuam elementos em comum, cada narrativa carrega em si particularidades específicas do contexto em que foram produzidas. “É possível encontrar perspectivas diferenciadas sobre as mulheres, os pobres, o tempo, a saúde, dentre outros aspectos”, afirma.
Em entrevista ao Olhar Virtual, Frazão dá pistas importantes sobre a estruturação de seu livro. A professora fala sobre a representação cultural dos santos, explica quem eram os hagiógrafos da Idade Média e como eles produziam seus trabalhos, além de esclarecer a importância da figura do santo para o imaginário medieval. Confira.
Olhar Virtual: Por que estudar relatos sobre a vida de santos?
Meu interesse por estudar os santos nasceu quando ainda cursava a graduação. Vários elementos me motivaram a refletir sobre esta temática, desde pessoais a técnicos. Destaco alguns. Na minha formação religiosa, protestante, os santos não estavam presentes, talvez por isso eles tenham me fascinado tanto. Além disso, como encaminhei minha formação para o estudo do medievo, período de grande difusão dos cultos aos santos, esta era uma temática que oferecia grandes possibilidades de pesquisa. Por fim, ressalto a disponibilidade da documentação hagiográfica, ainda pouco explorada, pois foi considerada por séculos somente como texto devocional, não matéria-prima para os historiadores.
Olhar Virtual: Conte um pouco sobre os santos abordados na obra.
Os relatos narram aspectos da trajetória e milagres de três homens que foram considerados santos. O primeiro, mais conhecido, é Tiago, personagem neotestamentário. Segundo os evangelhos, Tiago foi um dos discípulos de Cristo. Durante o medievo, construiu-se a crença de que, antes de ser martirizado na Palestina, fato narrado no livro de Atos, capítulo 12, ele teria pregado na Hispânia, para onde seu corpo foi levado após a sua morte. Com a “descoberta” de seu túmulo na Galiza, por volta do século IX, organizou-se um culto e uma peregrinação, cujo traçado mais conhecido e percorrido até a atualidade é o Caminho de Santiago. A partir deste momento, vários textos foram elaborados para a divulgação de seu culto, como os relatos que analisamos, e se cristalizaram as representações do santo. As três principais são: o santo como apóstolo, como peregrino e como cavaleiro. Esta última ganhou grande difusão no período chamado de Reconquista, quando a Tiago foi associado o epíteto de Matamouros. Da compilação conhecida como Liber Sancti Jacobi (LSJ), composta de cinco livros de autoria coletiva, analisei o volume dois, que trata do traslado dos restos mortais do santo da Palestina para a Hispânia, e o três, que narra seus milagres.
Os outros dois santos possuem um caráter mais regional, vinculando-se à região de La Rioja, então área do Reino de Castela. Os relatos foram escritos pelo mesmo autor, Gonzalo de Berceo, em duas obras diferentes: a Vida de San Millán de la Cogolla (VSM) e a Vida de Santo Domingo de Silos (VSD).
Millán, ou Emiliano, nasceu por volta de 474 no povoado riojano de Berceo. Ele foi um dos muitos que se dedicaram à vida eremita em La Rioja no período visigodo, porém o que se tornou mais conhecido. Millán viveu, nas proximidades do povoado em que nasceu, como eremita. Com cerca de 60 anos, foi ordenado sacerdote pelo Bispo Dímio de Tarazona, tornando-se membro do corpo eclesial de seu povoado natal. Como clérigo, segundo narram as hagiografias, passou a utilizar o patrimônio eclesiástico para dar esmolas, acabando por levar à insatisfação o restante do clero berceano, o que culminou com o seu desligamento da vida eclesiástica secular. Millán voltou, então, a viver como eremita, dedicando-se à cristianização da população dos vales dos rios Najerilla e Cardeñas, bem como das montanhas Cantábricas, reunindo diversos seguidores, entre homens e mulheres. Morreu em 574, sendo enterrado na cova em que vivera, que se transformou em local de peregrinação. Em 1067, seus restos mortais foram trasladados para a Igreja do Mosteiro de San Millán de Yuso, onde permanecem até os dias atuais. Millán é considerado o patrono de Castela, já que lhe é atribuído um milagre ocorrido no século X, quando, junto a Tiago, teria sido visto lutando ao lado dos reis cristãos contra os mouros na batalha de Simancas.
Domingo nasceu no início do século XI, no povoado riojano de Cañas, La Rioja. Oriundo de uma família nobre, foi ordenado sacerdote em 1030. Depois de um período atuando como clérigo secular, optou pelo eremitismo. Posteriormente, decidiu tornar-se monge, sendo admitido no Mosteiro de San Millán de la Cogolla. Ali permaneceu por cerca de dez anos. Após conflitos com o monarca Garcia de Nájera, por negar-se a entregar rendas do mosteiro emilianense, Domingo exilou-se em Castela, sendo nomeado, pelo rei Fernando I Castela, abade do então mosteiro de São Sebastião de Silos, com o objetivo de restaurá-lo. Domingo foi abade de Silos entre 1041 a 1073. Promoveu a restauração dos edifícios da abadia, introduziu a reforma disciplinar, organizou a biblioteca e o scriptorium. Foi durante esse período que se iniciou o florescimento econômico e intelectual desse cenóbio, que, após a morte do santo, passou a chamar-se Mosteiro de Santo Domingo de Silos. Domingo faleceu em 1073.
Olhar Virtual: Quem eram os hagiógrafos da Idade Medieval? Como eles tinham acesso às informações da vida dos santos?
Em sua maioria, os hagiógrafos eram homens letrados vinculados à Igreja, religiosos ou seculares. Há também notícias de algumas poucas mulheres que compuseram textos hagiográficos. Para redigir suas obras, esses autores recorriam a fontes diversas, como depoimentos de pessoas que conviveram com os considerados santos, que, em alguns casos, eram os próprios autores; representações iconográficas; tradições orais, algumas divulgadas por séculos; locais de culto; textos jurídicos, como processos de canonização, para os textos escritos a partir do fim do século XII; obras hagiográficas anteriores.
Olhar Virtual: Qual o perfil dos consumidores das narrativas desses hagiógrafos?
Esta é uma questão ainda em debate, pois na sociedade medieval conviviam duas formas de transmissão dos textos: a escrita e a oral. Um exemplo da ambigüidade dessa transmissão é o próprio texto de Gonzalo de Berceo: escrito em castelhano, em versos rimados, repleto de passagens nas quais o narrador se dirige ao público, mas fruto do árduo trabalho de um letrado, pois segue técnicas específicas, ligadas a escolas urbanas e composto de forma escrita. Em linhas gerais, os principais consumidores eram os próprios homens vinculados à Igreja, que liam sobre os santos para manter sua memória viva, geralmente associada a mosteiros, Igrejas, capelas etc.; como forma de devoção, coletiva ou particular; ou como exercícios nas escolas. Os relatos sobre santos também eram apresentados nas missas, como parte da liturgia, nos dias das festas a eles dedicadas. É possível também pensar em uma divulgação oral, por parte dos jograis, artistas ambulantes, de textos escritos em língua vulgar e sem preocupações litúrgicas ou dogmáticas, em locais de peregrinação, com caráter de entretenimento e propagandístico. Por fim, vale destacar a transmissão iconográfica, através de pinturas, esculturas, retábulos etc., presentes em igrejas, mosteiros, casas de leigos etc.
Olhar Virtual: A representação cultural dos santos era homogênea? Os hagiógrafos os retratavam da mesma maneira?
Este é ponto principal de meu trabalho. A partir da análise dos relatos hagiográficos que selecionei, procuro demonstrar que apesar dos lugares comuns – os santos curam, salvam as pessoas em situação de perigo, vencem os inimigos da fé etc., já que todas se inspiram no mesmo modelo, Cristo, e na Bíblia – cada texto possui um objetivo particular, relacionado ao seu contexto de produção e às relações de poder então estabelecidas. Assim, não dá para tratar esses materiais meramente classificando-os como textos devocionais ou litúrgicos ou que visam transmitir unicamente os interesses e valores eclesiásticos. Percebemos, no medievo, múltiplas visões em constante diálogo/conflito, inclusive no seio da própria Igreja. Assim, a meta principal do LSJ é divulgar a festa de São Tiago e reforçar o caráter apostólico do bispado de Compostela. As vidas berceanas buscam engrandecer a vida monástica tradicional, frente aos novos movimentos religiosos, em especial os mendicantes e os cônegos regulares. Além disso, os aspectos sociais que figuram nas obras são sempre ressignificados. Assim, é possível encontrar perspectivas diferenciadas sobre as mulheres, os pobres, o tempo, a saúde, dentre outros aspectos, em cada obra, como demonstramos em nosso livro.
Olhar Virtual: Que aspectos da vida dos santos são descritos e apropriados pelas hagiografias?
Há várias modalidades de textos hagiográficos, que enfatizam um ou outro aspecto relacionado ao santo. Por exemplo, os martírios pouco informam sobre a vida do santo, mas descrevem em detalhes a sua morte. Os relatos de traslados narram o transporte de relíquias de um lugar ao outro, ocasião em que ocorrem festas e milagres. Os tratados de milagres se centram na narrativa das curas, exorcismos, multiplicações de alimentos, enfim, dos acontecimentos maravilhosos ocorridos pela intervenção do santo, em vida ou após a morte. As vidas se aproximam das biografias, apresentando desde o nascimento do santo até os milagres que ele realizou após a sua morte.
Olhar Virtual: Que impactos os santos tinham sobre as vidas do homem medieval?
A partir da análise de iconografias, relatos sobre as peregrinações, achados arqueológicos, informações sobre os cultos, material litúrgico etc., é possível concluir que a devoção aos santos era um traço comum no medievo. Acreditava-se no poder de intermediários que os santos possuíam na relação dos homens com Deus, funcionando como intercessores em diferentes situações. Além disso, por seu caráter exemplar, muitos santos provavelmente eram vistos como modelos de comportamento. Contudo, como havia santos diversos, com “especialidades”, é possível pensar também em uma devoção pragmática, suscitada por situações pontuais: invocação de São Brás para problemas na garganta ou de São Cristóvão ao se realizar uma viagem. Os santos também foram elementos importantes na constituição de identidades coletivas. Basta pensar nos santos protetores de associações, cidades, confrarias, em torno das quais as pessoas se reuniam para atividades diversas, inclusive lúdicas.
Olhar Virtual: Em que o estudo da Hagiografia Ibérica Medieval permite entender a religiosidade sincrética brasileira atual?
Como parto da premissa de que o culto aos santos é ressignificado a cada contexto social específico, creio que o estudo histórico da santidade medieval pode ser útil para o estudo da religiosidade sincrética brasileira atual através da construção de analogias. Muitos santos populares no Brasil hoje, como santo Antônio de Pádua/Lisboa, Gonçalo de Amarante, Francisco de Assis, viveram no medievo e nesse período passaram a ser cultuados. Contudo, os sentidos produzidos pela devoção atual não mantêm relação com os da religiosidade medieval. Hoje Antônio de Pádua/Lisboa é conhecido, sobretudo, como o santo casamenteiro. No medievo, a devoção ao santo vinculava-se mais à sua eloqüência e à sua ação pacifista, para só citar um exemplo. Ainda pensando em analogias, destaco o movimento contrário: as reflexões desenvolvidas sobre a religiosidade brasileira atual, sobretudo no campo da Antropologia, são fundamentais para inspirar reflexões sobre a religiosidade do homem medieval.