A construção e destruição do conhecimento. Esta é a recente obra publicada pelo professor e diretor da Faculdade de Letras (FL) da UFRJ, Ronaldo Lima Lins. Em seu livro, o autor aborda a dialética entre a destruição e a construção que ocorre no conhecimento e como esse fenômeno se reflete no comportamento social.
Para o autor, a demolição do patrimônio cultural e arquitetônico de uma cidade se tornou parte do cotidiano e exemplo contundente da destruição do conhecimento. No entanto, esse impulso não é resultado apenas das guerras. É, também, fruto do sistema econômico vigente: o capitalismo.
Lima Lins afirma que o sistema capitalista sobrevive dessa destruição travestida de construção, na qual se considera muitas vezes mais barato destruir do que preservar. “Quando você destrói alguma coisa, você leva abaixo também elementos da estética de certa época e certo tipo de configuração da vida da cidade”, destaca o professor.
Os países mais frágeis economicamente são os mais suscetíveis à dilapidação de seu patrimônio. Forças internas colaboram com a destruição à medida que o país adere a modismos de uma época; já a destruição provocada por pressões externas é resultado das guerras. Entretanto, Lima Lins acredita que a criatividade individual é capaz de provocar uma reviravolta no curso dos acontecimentos e trazer à tona alguma idéia que modifique a tendência da destruição.
A obra será lançada, no dia 18 de março, às 19 horas, na Livraria da Travessa – avenida Afrânio de Melo Franco, 290, loja 205-A.
Confira a entrevista concedida por Lima Lins ao Olhar Virtual:
Olhar Virtual: Como surgiu a idéia de escrever o livro?
Esse é um percurso intelectual que venho realizando aqui (Faculdade de Letras) há algum tempo, que passa efetivamente pelas minhas atividades na Pós-Graduação e pelas discussões que são travadas com esses alunos. No livro, faço uma análise e, ao mesmo tempo, uma crítica ao que se passa no nosso mundo. Freqüentemente, essa análise e crítica utilizam a questão estética, fazendo um entrelaçamento entre literatura, filosofia, história e sociedade.
Olhar Virtual: Quais são essas críticas?
Em que mundo nós estamos? Como surgiu, objetivamente, essa questão? Surgiu porque, de fato, naquela guerra do Iraque o que saltou aos olhos de uma sociedade dita civilizada foi uma iniciativa de um país – os Estados Unidos –, dito culto, onde se produz ciência e conhecimento. Esse país invadiu o Iraque por um pretexto banal e não hesitou em destruir todas as instituições que constituíam o patrimônio não só daquele país como da história. Por que um país, o mais culto da época, se dá ao luxo de tomar uma iniciativa dessa natureza sem nenhuma consideração pelos valores culturais do Iraque? Um dos mitos da nossa sociedade é imaginar que a nossa cultura previne a barbárie. O século XX mostrou que a cultura não impede a barbárie porque a experiência do holocausto ocorreu num dos países mais civilizados e cultos da Europa, a Alemanha. Agora, como se dá essa dialética entre construção e destruição ao nível do conhecimento? Essa foi a preocupação que se desdobrou dessas questões.
O conhecimento também é território dessa dialética de construção e destruição. Essa foi a indagação que me motivou. Na introdução do livro, coloco parte da minha experiência pessoal, afinal de contas tenho uma idade que me fez ver a destruição de um bairro – Copacabana. Quando morava lá, durante a infância, era um bairro de casas. Para virar o que virou hoje, Copacabana passou por um processo de demolição permanente. Passei minha juventude escutando barulho de serra-elétrica porque era uma construção atrás da outra. O bairro ficou completamente desfigurado. Mudaram as relações humanas, os valores, a paisagem e o cenário. Tal mudança obstruiu a passagem de vento pelo bairro, tornando-o um lugar quente. O bairro tornou-se decadente. Coisa semelhante se repetiu em Ipanema.
Em um passeio pelo Centro, você percebe que na Lapa há espaços vazios onde antes havia prédios. Tem um caso famoso que é o do antigo Museu de Belas Artes, que ficava no bairro. Desse prédio, só restou a portada, que está na PUC.
Isso é interessante como elemento de investigação. São valores que foram se constituindo em determinado instante que coincidiram com a falta de uma mentalidade de preservação, que determinaram esforços de demolição na cidade sem que nada fosse construído.
Olhar Virtual: Uma de suas indagações é como a dialética construção/destruição ocorreu no conhecimento. De que maneira isso acontece?
Quando você começa a discutir a questão da destruição e da construção no conhecimento, você vai percebendo que conhecimento é um elemento muito importante na afirmação do saber. O conhecimento é também uma forma de afirmar o poder. Isso se passa no nível das relações humanas. Da forma como a nossa sociedade se estruturou, quem sabe tem poder, quem não sabe não tem. Não tem nada a ver com inteligência. Uma pessoa analfabeta pode ser brilhante, mas se não tiver o conhecimento não terá o poder. Entre as nações ocorre a mesma coisa. Por que os Estados Unidos são o país mais poderoso hoje? Porque têm o conhecimento. Eles fazem um forte investimento em educação e ciência, elementos que constroem o conhecimento, e com isso dominam o mundo. Isso não significa dizer que eles nunca vão desabar.
Essa dialética destruição/construção é permanente na vida dos homens porque nós nascemos e vamos morrer. Nosso nascimento é construção e nossa morte é a destruição. O mais próximo que o homem chegou da imortalidade, concretamente falando, foi o conhecimento que ele construiu. Fora isso, a imortalidade é uma mera abstração. Pelo conhecimento, o homem deixa um legado para os outros e quem o leva adiante o desenvolve porque ele (o conhecimento) é feito por acumulação.
Essa dialética construção/destruição acaba virando uma camisa-de-forças, da qual jamais poderemos nos libertar. O capitalismo é um sistema dado à destruição. Ele é a construção travestida de destruição, e vice-versa. Porém, é necessário perceber que o valor de algo não pode e não deve ser medido pelo seu valor econômico. Outros valores precisam ser levados em conta e, freqüentemente, não são. O capitalismo é impulsionado por essa lógica, por esse elemento destruidor, principalmente, porque persegue o lucro a todo custo.
Olhar Virtual: O senhor está falando sobre a destruição do conhecimento. Quais são os fatores mais marcantes dessa destruição?
Que importância tem o conhecimento em um país como o Brasil? No cenário internacional nós perdemos, porque ainda não aprendemos a investir, suficientemente, em educação. Quanto mais frágil um país, mais sujeito a destruições ele é.
Falta também noção de defesa contínua da idéia de construção, porque a destruição, certamente, vai aparecer, mas é necessário encontrar mecanismos para defender o patrimônio construído.
Olhar Virtual: Como é possível preservar o patrimônio construído?
Só se preserva um patrimônio através de uma forte conscientização. Mas esse processo nunca se formou nem se estruturou suficientemente. É por isso que, na virada do século XX para o XXI, os Estados Unidos fizeram o que fizeram. Os países mais frágeis economicamente são mais frágeis também na defesa de seu patrimônio. Se você comparar um país europeu com o Brasil, você vai ver que a preservação lá, do ponto de vista cultural, é mais forte do que aqui. Aqui a idéia de preservar sofre tantas pressões que valorosos patrimônios são contestados e postos abaixo, inclusive, por setores da cultura.
No Brasil, vários prédios importantes foram demolidos. Isso foi dilapidando um patrimônio construído ao longo do tempo. Como somos um país jovem, somos muito permeáveis a idéias da moda. Essa é uma das críticas que Lévi-Strauss faz à sociedade brasileira no livro Tristes trópicos. Ele afirma que a elite intelectual brasileira era muito culta, mas em compensação passava de uma teoria para outra com facilidade. Nós somos permeáveis às idéias que estão na moda e as abandonamos quando outras surgem.
Olhar Virtual: Essa destruição está diretamente relacionada com a pós-modernidade?
Ela é típica do modernismo, mas não foi abandonada pelo pós-modernismo porque continuamos no capitalismo.
No modernismo, a arte foi construída com base na destruição do que existia anteriormente, ou seja, negando o valor daquilo que já existia, e construindo o novo. Houve certo esgotamento nisso porque a idéia de criar o novo foi se esgotando. Quando chega a fase do pós-modernismo, dos anos 80 em diante, qualquer coisa que se produzisse em termos de arte é aceita. Então, parece que é mais liberal, mas os mercados de arte e de literatura estão sendo marcados pelo fator econômico.
O jornalismo literário também virou indústria extremamente marcada pelo poder econômico; sem a noção de que acima de tudo tem que estar a humanidade, nós caminhamos para um lugar perigoso.
Olhar Virtual: Como o senhor definiria o atual panorama em que nos encontramos?
O panorama não é animador, mas não é sem saída. É preciso saber que em todas as situações da vida os homens sempre encontraram saídas, às vezes, sem dar a impressão de que as estavam encontrando. Há situações extremas em que você pensa que chegou no limite, mas há uma reviravolta, há situações que não são extremas, que são vividas no cotidiano, em que a individualidade pode se destacar. Por exemplo, a categoria de herói. O que é um herói? É aquele que dirige um país ou de repente levou a vitórias? Pode até ser, mas não pode ser só isso porque num confronto das pessoas ao nível da individualidade há gestos de heroísmo. Se uma pessoa assume uma posição contrária quando todo mundo está assumindo uma posição favorável, isso é um gesto de heroísmo. Isso, diga-se de passagem, tem a ver com a característica dos indivíduos, porque eles não só uma massa indiferenciada que abre mão da sua capacidade de iniciativa, que abre mão da sua inteligência e percepção crítica só para concordar com todo mundo. Muitos até fazem isso, mas nem todos fazem. De repente aparece alguém dizendo alguma coisa nova, diferente, que possa resultar em algo positivo. Vou mostrar outro exemplo interessante: imagine a verdade no século XVIII. Ela era a verdade oficial. Não havia, mas surgiu depois, a iniciativa individual de ficar contra uma verdade oficial porque os riscos eram enormes. Rousseau resolveu ser o profeta da verdade. Ele escreveu as verdades dele. O século XVIII começou, então, a dizer verdades. Isso transformou o mundo e resultou na Revolução Francesa, mas começou com uma experiência de ordem, essencialmente, individual. No coro dos contentes, o todo está repetindo que está tudo muito bem quando você está vendo as pessoas apodrecendo do seu lado, morrendo na miséria e na opressão com a falsa idéia de que todo mundo pode ficar rico, quando, na verdade, pouquíssimos ficam. De repente, alguém pode dizer algo diferente.
Como os seres humanos ainda têm essa característica (a da criatividade individual), ainda que essa conjunção seja da ordem do sistema e que idéia da construção venha sempre com a de destruição, pode surgir alguma coisa que reverta essa tendência.
Não significa que vamos nos libertar da destruição, pois ela faz parte da vida, mas podemos realizar um esforço de preservar ou de destruir. A preservação é importante num sistema social.
Eu acho que há uma reflexão importante a se fazer sobre esse tema, que diz respeito à sociedade e à cultura, como elas se comportam nesse processo.
Há artistas que retiram do lixo formas de expressão. É uma maneira de contestar e também de preservar. É também uma forma de dizer que vivemos numa sociedade em ruínas. Vivemos num universo montado, permanentemente, em ruínas. É uma constatação trágica, mas não sem saída, porque há a criatividade da individualidade que pode reverter processos, inclusive, históricos. Mas, é claro, requer muita consciência.