Olho no Olho

Tempo em manifesto

Aline Durães

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“Que as classes dominantes tremam à idéia de uma revolução comunista! Os proletários nada têm a perder a não ser suas algemas. Têm um mundo a ganhar. Proletários de todo o mundo, uni-vos!”. Foi com essa conclamação que Karl Marx e Friedrich Engels concluíram, em fevereiro de 1848, o Manifesto do Partido Comunista.

O texto, encomendado pela Liga dos Comunistas a dois dos seus membros mais atuantes para expor as idéias teóricas e práticas do Partido, foi publicado em um contexto de intensas inquietações políticas e sociais. Percorreu o mundo inteiro, foi traduzido em quase todas as línguas e teve importância ímpar na formação e no desenvolvimento da tradição revolucionária de vários países.

Embora tenha sido editado há mais de um século e meio, o documento contém elementos que se mantiveram atuais ao longo do tempo. Considerado por muitos analistas como um texto visionário, o Manifesto, já em 1848, apontava a tendência de mundialização do sistema capitalista, processo esse que viria a se consolidar com a globalização iniciada no século XX.

Não foram poucas, no entanto, as críticas que o texto recebeu ao longo desses 160 anos. Vários argumentos foram utilizados, ideologicamente ou não, para desqualificar as idéias ali veiculadas. Não raro, os críticos tacham o documento de panfletário e teleológico. Afirmam também que a História acabou por desmentir o Manifesto, na medida em que a tomada de poder pelos trabalhadores prevista no texto não se concretizou.

Para refletir sobre as qualidades e os equívocos desse texto, o Olhar Virtual entrevistou Marco Aurélio Santana, coordenador do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia do IFCS/UFRJ, e Marcelo Braz, professor da Escola de Serviço Social (ESS/UFRJ).

 

Marcelo Braz
Professor da Escola de Serviço Social

O Manifesto do Partido Comunista foi editado em fevereiro de 1848, pouco antes da emergência dos movimentos revolucionários que sacudiram a Europa naquele ano. O Manifesto surge como um documento originário do movimento da Liga dos Comunistas – criada na década de 30 com o nome de Liga dos Proscritos e que teve seu nome alterado por duas vezes (primeiro passou a se chamar Liga dos Justos e depois Liga dos Comunistas) –, redigido por Marx e Engels (membros da Liga, que foram incumbidos de prepará-lo, de forma que expressasse os princípios políticos do movimento e que, ao mesmo tempo, o promovesse na arena política de então).

Pode-se afirmar que o Manifesto interpretou esse momento, percebendo que diante desse novo domínio de classe que se cristalizou, uma nova classe surgia como protagonista das mudanças, originária das próprias estruturas da sociedade burguesa, como o “outro lado” de uma ordem claramente dividida em duas classes visceralmente antagônicas. Trata-se do proletariado, que passa a assumir o caráter histórico e revolucionário que outrora desempenhou a burguesia.

Deve-se ao Manifesto a inscrição pioneira e definitiva (no plano teórico) da perspectiva proletária no horizonte do movimento comunista. Antes disso, tinha-se um conjunto de perspectivas socialistas de distintos matizes, fundamentalmente a dos socialistas utópicos, que apontavam para uma reforma social que envolvesse o conjunto das classes sociais, e a dos blanquistas, que atribuíam a um grupo restrito o papel de vanguarda, retirando o protagonismo da classe organizada. Em ambas as perspectivas, percebe-se a ausência do protagonismo da classe proletária organizada ou uma subordinação política dela como classe.

O Manifesto se configura em um texto que possui incrível perdurabilidade histórica, indicando uma clara perspectiva de estar à frente dos movimentos da época, mesmo que retirando deles as suas potencialidades. Em outras palavras, para se colocar à frente de sua época e, ao mesmo tempo, para apontar e indicar suas tarefas imediatas, o Manifesto angariou uma envergadura na qual conseguiu galgar ao status de manifesto universal de todo o movimento proletário mundial.

Para isso, coube-lhe claramente um esforço de busca de unidade político-ideológica que acabou se tornando uma de suas grandes marcas. Essas particularidades fizeram com que Marx e Engels buscassem maiores generalizações ou pelo menos, que optassem por não se deterem em especificidades na própria redação.

Tal característica literária não trouxe prejuízo qualitativo algum ao documento. Pelo contrário, coroou-o como um dos mais clássicos textos políticos de todos os tempos, exatamente por conseguir chegar às variadas camadas sociais da sociedade, com linguagem textual que demarcou uma nova concepção da civilização humana, na qual o homem é fruto de sua luta material pela existência ao longo da história. Como bem observou o historiador Eric Hobsbawn a respeito da redação do Manifesto: “O Manifesto Comunista como retórica política possui uma força quase bíblica. Em suma, é impossível negar seu poder de persuasão enquanto literatura”.

Marco Aurélio Santana
Coordenador do Programa de Pós-graduação em Sociologia
e Antropologia do IFCS

Desde sua publicação e ao longo de todo o século XX, o Manifesto fez uma carreira extraordinária em termos de sua leitura, discussão e divulgação pelos movimentos de trabalhadores. Apesar de sua singularidade, aliás, já apresentada no Manifesto, os processos revolucionários que experimentamos nos mais variados países e períodos, tinham o Manifesto como um de seus textos e fonte obrigatórios. Isso deu à obra uma força e longevidade sempre renovadas. Além disso, deve-se lembrar que nos meios acadêmicos, em diferentes áreas, o Manifesto figurou como obra de discussão e análise, ainda que em menor grau que outras do próprio Marx.

O Manifesto foi escrito exatamente para ser um "panfleto" de síntese e divulgação de idéias. O interessante é perceber exatamente como um texto pequeno, escrito com esse fim, acabou por se tornar uma obra tão importante, que ainda suscita tanto debate até hoje, 160 anos depois. Impressiona que um panfleto receba atenção crítica de tal monta. É sintomático da força assumida por ele. Dependendo de como se olhe, muitas limitações podem ser apontadas no texto. Mas, em um sentido mais amplo, devemos nos perguntar, qual obra não tem suas limitações e não é marcada por certo contexto onde foi produzida?

O documento antecipa, entre outras coisas, a percepção do capitalismo como sistema planetário, que transforma a tudo e a todos em mercadoria; a indicação de sua crescente capacidade de produção e a impossibilidade de que os frutos da mesma sejam socializados nos marcos desse sistema; a idéia da necessidade inexorável do mesmo de revolucionar-se constantemente, desmanchando todas as relações solidificadas, profanando sagrados; a visão da tendência à ampliação da exploração e da necessidade de que os trabalhadores, produtores da riqueza social, se unam no sentido de fazer valer seus interesses, reivindicações e projetos.

Creio que o contexto no qual o Manifesto foi formulado e para o qual foi dirigido, inegavelmente, mudou muito. E o próprio Marx, apesar de eixos de continuidade, mudou, reavaliou, criticou suas próprias formas de pensar cotejadas aos avanços da realidade. Em um prefácio posterior, de 1872, Marx e Engels já assinalavam, por exemplo, que algumas partes do texto estavam “antiquadas” frente ao “desenvolvimento colossal da indústria moderna”, que outras seriam “redigidas de maneira diferente” e que a crítica que endereçaram às vertentes socialistas, “ainda que corretas, estavam desatualizadas”.

Algumas das propostas do Manifesto foram, aqui e ali, aplicadas no capitalismo, que soube incorporá-las sem ser destruído. Hoje, no século XXI, experimentamos um capitalismo que sequer deve ter sido sonhado por Marx e Engels. Nas últimas décadas, dadas as transformações no mundo do trabalho, tivemos uma reconfiguração da classe trabalhadora, de suas formas de organização e de seus projetos. Isso levou a que muitos acreditassem que viveríamos a "crise do trabalho", do fim do proletariado, da luta de classes, do socialismo etc., e que chegáramos mesmo ao "fim da história" pela via da democracia liberal e da economia de mercado. Isso traria de roldão mais uma tentativa, das muitas já ocorridas, de sepultamento de Marx e de sua obra.

Contudo, para muitos outros, como, apesar das diversas qualificações do tipo "pós-industrial" e "pós-moderna", ainda vivemos em uma sociedade capitalista, mesmo que em nova fase, dividida em classes sociais, o chamamento do Manifesto e sua crítica ao capitalismo ainda fazem sentido, se mantendo atual. Assim, Marx ainda apareceria, como um espectro, a assombrar o capitalismo, como um de seus mais agudos intérpretes e críticos.