Entrelinhas

Antes do Furacão: o Mardi Gras de um folião brasileiro em Nova Orleans


 

Priscila Sequeira

capa do livro

Ao ganhar uma bolsa na Fundação Rockefeller, o escritor, compositor e professor adjunto do Departamento de Ciência da Literatura da UFRJ, Fred Góes, teve a chance de passar um ano desenvolvendo pesquisas acerca do Mardi Gras, ou Terça-feira Gorda, o carnaval comemorado no estado de Nova Orleans, nos Estados Unidos.

O resultado da pesquisa é o livro Antes do Furacão: o Mardi Gras de um folião brasileiro em Nova Orleans. A escolha do título foi motivada pelo fato de o autor ter participado e pesquisado, precisamente, o carnaval anterior ao furacão Katrina, que devastou a região em agosto de 2005. Em sua obra, Góes narra suas experiências e analisa um dos mais famosos carnavais do mundo.

O Olhar Virtual entrevistou o autor sobre questões como a diferença entre o Mardi Gras e o carnaval brasileiro e o que mudou na comemoração depois do Katrina.

Olhar Virtual: De onde surgiu a idéia de fazer uma pesquisa sobre o Mardi Gras?

Bem, venho estudando o carnaval há muitos anos. Até que em 2003, recebi uma bolsa da Fundação Rockefeller, com vigência de um ano, em nível de pós-doutoramento para desenvolver a pesquisa sobre o Mardi Gras de Nova Orleans junto à Universidade de Tulane.

Olhar Virtual: A pesquisa tem caráter acadêmico?

Sim, foi desenvolvida em âmbito universitário. Trata-se de um estudo comparativo entre o carnaval brasileiro, com foco no do Rio de Janeiro, e o de Nova Orleans.

Olhar Virtual: Quais foram os impactos causados pelo furacão Katrina na comemoração do Mardi Gras? O que mudou?

Os impactos foram muitos, especialmente no que diz respeito ao carnaval dos afro-descendentes, o carnaval da classe trabalhadora pobre que vivia nas áreas mais atingidas pelas inundações. Houve uma verdadeira diáspora dessa gente; a cidade hoje tem bairros fantasmas. O turista comum não se apercebe disso porque circula nas áreas mais ricas da cidade, localizadas nas partes mais elevadas que não sofreram destruição significativa.

Olhar Virtual: De onde surgiu a tradição de usar colares de contas no Mardi Gras?

Em Nova Orleans, tradicionalmente, quem desfila nos carros são homens brancos mascarados. O colar era um mimo para a audiência feminina. Com o tempo, a brincadeira generalizou-se. Imagine o significado que se agrega a esses colares, oferecidos gratuitamente, numa sociedade em que tudo se compra e vende. As pessoas ficam loucas nas ruas durante o Mardi Gras e a brincadeira é ganhar o maior número possível de colares e outros brindes oferecidos.

Olhar Virtual: Por que o Mardi Gras é comemorado quase unicamente em Nova Orleans? Por que a festa não se estendeu a outras cidades dos Estados Unidos?

Acho que tem a ver com a cultura creole de Nova Orleans, o  espírito festivo da cidade. No interior da Luisiana se realiza um carnaval "caipira", cajun, bastante diferente do que acontece em Nova Orleans. 

Olhar Virtual: Você cumpriu o papel de pesquisador e de viajante. O que mais te surpreendeu como pesquisador, em termos de cultura ou da própria comemoração? Que mais te surpreendeu como viajante?

Tanto como pesquisador quanto como viajante o que mais surpreendeu foi encontrar, nos Estados Unidos, uma cultura que tem muito mais a ver com a nossa, especialmente com a baiana, do que com a do resto daquele país. Nova Orleans é uma cidade negra por excelência, celebrada por sua musicalidade, tem uma comida personalíssima, muito condimentada, com uma gente muito cordial. Só lá fui chamado de baby por uma policial.

Olhar Virtual: Quais são as maiores diferenças e semelhanças entre o carnaval brasileiro e o Mardi Gras?

Falar de carnaval  do Brasil é um negócio complicado na medida em que não há um carnaval, mas inúmeros: o do Rio é diferente do de Salvador, que por sua vez difere do recifense, para dar apenas três exemplos. Porém, se focarmos no carnaval carioca para estabelecer um paralelo com o de Nova Orleans, fica evidente que nós demos fisionomia própria, singular, à celebração em função da nossa mestiçagem, da nossa extraordinária capacidade de absorver e, imediatamente, transformar as influências externas. Além disso, temos um dado que em Nova Orleans não existe: a música de carnaval. Isso só se dá no âmbito dos afro-descendentes. O carnaval oficial de lá, eu me refiro ao carnaval branco dos desfiles, é o carnaval que acontecia aqui no século XIX, carnaval das Grandes Sociedades. 

Olhar Virtual: Qual é a importância do carnaval para uma cultura?

Creio que é fundamental. Através do carnaval podemos perceber com clareza como uma sociedade se expressa por trás da máscara, como determinados elementos parecem se evidenciar seja pela confirmação seja pela inversão.

Olhar Virtual: Sua visão do carnaval brasileiro como um todo (tanto o frevo em Olinda, o trio elétrico de Salvador quanto o carnaval do Rio de Janeiro) mudou depois de sua pesquisa acerca do Mardi Gras?

Não é que tenha mudado. Simplesmente confirmou minha percepção da nossa extraordinária capacidade de celebrar de formas tão diversas e com características tão singulares. Em outros países das Américas, há carnavais bastante interessantes, em Cuba, no México, na região do Golfo, no Uruguai, na Bolívia, só para citar alguns casos.