Compreender como as cidades são geridas é um dos desafios do projeto Cidade Ideal X Cidade Real: a Função da Legislação Urbanística, coordenado pela professora da Faculdade de Arquitetura (FAU) da UFRJ, Sonia Le Cocq. Foram pesquisados os Planos Diretores e as decisões judiciais relativas aos processos de urbanização em sete cidades do Estado do Rio de Janeiro: Niterói, Rio de Janeiro, Macaé, Rezende, Campos, São João de Meriti e Angra dos Reis, a fim de comparar o que determina a legislação urbanística e o que é posto em prática.
Segundo Sônia Le Cocq, existe uma defasagem entre o que está escrito na lei e a vida real dos brasileiros. “Os Planos Diretores não foram plenamente aplicados e a prática do ordenamento territorial continuou sendo o código de obras das cidades, que é restrito, pois define apenas parâmetros técnicos para uma cidade formal, sem levar em conta questões sociais, como a realidade das favelas”.
Função social da cidade
Realizada desde 2002, a pesquisa da FAU é parte do Programa de Pós-graduação em Urbanismo e vem analisando os processos na primeira e segunda instância do Judiciário e no Supremo Tribunal de Justiça, que envolvem questões relativas ao direito urbanístico, como conflitos de terras e regulamentação de moradia em favelas e lotes clandestinos. As decisões judiciais analisadas datam de 1980 até 2007, permitindo traçar um paralelo do panorama das questões urbanísticas, antes e depois da implementação da Constituição Federal de 1988, que aprovou o Estatuto das Cidades e o Plano Diretor.
O Estatuto delega aos municípios a tarefa de estabelecer suas políticas urbanas e lança novos parâmetros sobre gestão e planejamento urbanístico, já que incorpora o conceito de função social da cidade. Municípios com mais de 20 mil habitantes assumiram a responsabilidade legal de elaborarem um Plano Diretor. A participação direta da sociedade civil no Plano anuncia uma nova política administrativa, mais preocupada com questões sociais do que apenas delimitações técnicas. Desta forma, cabe ao Plano moldar as funções sociais da cidade, por meio da normatização das formas de ocupação do solo, do estabelecimento das prioridades políticas e da determinação das áreas de interesse turístico, ecológico ou social.
Na prática o Plano Diretor define, por exemplo, áreas de ocupação consolidadas, onde não devem mais ser autorizadas novas construções, e promove a renovação imobiliária em regiões pouco ocupadas. Ao apontar as diretrizes gerais para o crescimento das cidades ele prioriza o interesse comum em detrimento da soberania da propriedade privada.
Planos Diretores: idéias no papel
Cerca de 1600 prefeituras brasileiras tinham que aplicar seus Planos Diretores, até outubro de 2006, mas o prazo foi ampliado devido às dificuldades encontradas. Para Sonia Le Cocq, coordenadora do projeto, os Planos em geral apresentam bons projetos, que foram aplicados parcialmente ou não foram aplicados, porque não atendem aos interesses de expansão do capital, em especial a especulação imobiliária.
Os Planos Diretores mais antigos, como o do Rio de Janeiro, criado em 1992, priorizava questões de habitabilidade, uma vez que a prioridade administrativa era integrar à cidade formal as mais de 700 favelas e os milhares de loteamentos ilegais ocupados e edificados sem nenhum apoio em normas urbanísticas.
“O programa favela bairro cumpriu muito do que foi definido pelo seu Plano Diretor. É preciso urbanizar as áreas que já foram construídas sem um planejamento urbanístico prévio e só remover famílias de áreas de risco. Outro ponto importante é investir em transportes públicos como o metrô”, afirma Sonia Le Cocq.
Atualmente, os Planos Diretores apresentam uma grande preocupação com as questões ambientais. O pensamento ecológico é o novo mobilizador da consciência do espaço público, da preservação do bem de todos. A relação direta entre as formas de ocupação do solo e o impacto no meio ambiente começa a ser interiorizada pelas novas gerações e levada em conta nas novas regulamentações que regem o meio urbano.
O balanço da pesquisa, ainda em andamento, revela que não foram encontradas sentenças de processos envolvendo direito urbanístico em segunda instância, havendo pouca clareza sobre a aplicação do conceito de função social da cidade dentro do Judiciário.
Sonia Le Cocq aponta alternativas para gestão dos municípios. Ela afirma que o sistema de democracia representativa já não atende mais a sociedade, mas existem possibilidades de mudança, o que falta é vontade política. Uma dessas alternativas seria um sistema voltado para a democracia participativa, dando autonomia para às sub-prefeituras, com administração descentralizada e autonomia financeira, o que agilizaria os processos e faria com que a sociedade civil tomasse parte nas decisões. “Dividir o poder responsabiliza as pessoas”, garante Sonia Le Cocq.