Alvejado pelas balas do amante da esposa, tenta imaginar o  rosto da mãe e a República que faria avançar o país que considerava  “organicamente inviável”. Naquela manhã de domingo, 15 de agosto de 1909, antes  de jazer em Piedade, zona norte do Rio, Euclides recordaria ainda a terra, o  homem e a luta de Canudos. Cem anos depois, a vida e a obra do autor de Os Sertões seguem investigadas por  diversas áreas do saber, debruçadas em desvendar o enigma e os caminhos de uma  nação.   
“Engenheiro, jornalista, escritor. Onde termina e começa  cada uma dessas faces?”, indaga Anélia Pietrani,  professora do Departamento de Literatura  Brasileira da Faculdade de Letras (FL/UFRJ). Para a docente, Euclides apresenta  uma prévia da visão interdisciplinar e seus tênues limites, além da crítica à  nascente República (1889). “Um republicano que via com estranheza uma luta  entre brasileiros, como em Canudos, e apontava as chagas da res publica, do latim “coisa pública”,  dominada pela plutocracia e por oligarquias presentes até hoje na figura das  famílias Sarney, Collor, Magalhães e outras.”    
  
Inspirado em   Castro Alves, Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha escreve  poemas sob o título de “Ondas”. Nos estudos, passa pela atual Escola  Politécnica da UFRJ, abandonando-a para ingressar na Escola Militar da Praia  Vermelha, de onde acabaria expulso por atirar a espada de cadete aos pés do  ministro da Guerra ainda sob o regime do Império. Com a proclamação da  República, é incorporado ao Exército e, mais tarde, licenciado como tenente,  torna-se correspondente de O Estado de S.  Paulo para acompanhar a quarta expedição do governo ao sertão da Bahia  contra Canudos. “Logo após a publicação de Os  Sertões (1902), José Veríssimo exalta a obra como misto de ciência e  literatura, enquanto o autor prefere chamá-la de livro-vingador”, recorda  Pietrani, explicando que a referência de Euclides trata do “Brasil, que estava  de costas para si mesmo, imerso na belle  époque e atento à Europa”.   
  
Natural de Cantagalo, Rio de Janeiro, a professora pondera  sobre o desafio de levar o texto do famoso conterrâneo e outros clássicos até  as salas de aula. “Nunca, de fato, pedi aos meus alunos do ensino médio que  lessem ‘Os Sertões por inteiro. O  trabalho com trechos é questionável, porque acaba sendo um estudo fragmentado”,  admite Pietrani, não deixando de defender os estudantes no “direito de ler” a  íntegra de uma obra.  Para Luiz Costa  Lima, a dificuldade não será apenas quanto a Euclides, mas a toda literatura.  “A questão é importante e deveria ser discutida seriamente. No fundo, ela  remete à pergunta: que papel se concede à literatura na formação da juventude  de hoje? Concede-se algum?”, interroga o professor aposentado de Teoria  Literária da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).
    
  Paraíso perdido 
Autor de Terra Ignota: a construção de ‘Os Sertões’ (Civilização Brasileira, 1997), Costa Lima aponta que, seguindo o cientificismo do fim do século XIX, Euclides concebia a ciência como a chave para as certezas do homem. “Ele acreditava que a literatura do futuro conteria um núcleo de análise científica, revestido de um brilho literário, que favorecesse a leitura. Neste instante em que a superioridade discursiva era concedida à ciência, dava à literatura o lugar de ornamento. O mais interessante seria agora nos perguntarmos se não é essa concepção que permanece dominante”, questiona o também professor do Departamento de História da Pontíficia Universidade Católica (PUC/RJ).
Em Os Sertões, certos críticos destacam o tratamento dado às mulheres, muitas vezes classificadas como megeras ou "demônios de anáguas". Os mais afobados poderiam correr a chamar o autor de machista; porém, Costa Lima alerta sobre observações rápidas acerca de quem cresceu órfão de mãe. “Pertencia a uma sociedade patriarcal e o próprio modo como procurou resolver seu dilema matrimonial era adequado a uma conduta machista. Entretanto, não se infere que visse a mulher, em geral, como bruxa”, contesta Costa Lima, elucidando que os insultos concernem à passagem sobre um grupo de prisioneiras de Canudos na qual, no entanto, também destaca a beleza singular de uma delas. “Como um grande tímido, é possível que Euclides se sentisse fragilizado diante da mulher. Mas não vamos fazer uma relação de causa e efeito.”
Após o meteórico sucesso de Os Sertões, Euclides elege-se à Academia Brasileira de Letras (ABL). Já imortal, parte para o Alto Purus, com o objetivo de realizar o levantamento cartográfico do rio na fronteira com o Peru. “Desta experiência na região Amazônica, intentava escrever o Paraíso Perdido”, revela Pietrani, enfatizando que o livro era tratado como o segundo livro-vingador. “Mostraria um lado do país também desconhecido. Euclides tinha esse compromisso de alertar ao leitor sobre o Brasil, além de uma paixão pela palavra ao narrar algo como ‘Rugiam raivosamente cinco mil soldados, mas Canudos não se rendeu...’.”