No último dia 30, aconteceu o lançamento do livro Mikhail Bakhtin: linguagem, cultura e mídia, organizado por Ana Paula Goulart Ribeiro, professora da Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ, e Igor Sacramento, doutorando da ECO-UFRJ. A coletânea reúne artigos dos mais importantes especialistas na obra bakhtiniana no contexto acadêmico anglo-saxão, como Craig Brandist, Dominick LaCapra, Horace Newcomb, Linda Hutcheon, Michael Gardiner, Robert Stam, Stuart Hall, entre outros.
Em entrevista, a professora esclarece algumas questões sobre o livro, sua relação com o pensamento do autor e a importância do pensamento de Bakhtin para o estudo da Comunicação e de outras áreas.
Olhar Virtual: Como surgiu a ideia de escrever o livro?
Ana Paula Goulart Ribeiro: Há muitos anos, estudo a obra de Mikhail Bakhtin. Ainda na época da graduação, um professor recomendou a leitura de Problemas de poética em Dostoiévsky, logo depois de confessar minha paixão pelo autor de Crime e Castigo. Adorei o livro. Não tive a menor dúvida de que se tratava de um trabalho genial. Mas, naquele momento, Bakhtin era para mim apenas um brilhante crítico literário, que havia escrito sobre meu escritor predileto.
Somente quando comecei o mestrado na Escola de Comunicação da UFRJ, no início da década de 1990, assistindo às aulas de Análise do Discurso do professor Milton José Pinto, tive acesso a outros textos do autor e comecei a entender que ele havia desenvolvido uma Filosofia da Linguagem e que suas reflexões eram de extrema importância para os estudos da comunicação.
A partir daí, li todos os seus textos e escrevi alguns artigos sobre aspectos que julgava importantes em sua obra. Quase duas décadas se passaram e, de aluna do Programa de Pós-graduação da ECO-UFRJ, eu me tornei uma das professoras. Em minhas aulas, sempre falo, de uma forma ou de outra, sobre Bakhtin e discuto algumas de suas ideias. Mas, no primeiro semestre de 2007, mais de vinte anos depois de ter lido pela primeira vez um texto do autor, resolvi dedicar um curso inteiro para discutir seu pensamento.
O objetivo era fazer uma leitura sistemática dos seus trabalhos, desde os escritos filosóficos de juventude até suas obras consagradas da maturidade. A ideia era debater os principais conceitos desenvolvidos pelo autor e avaliar seu legado intelectual. Igor Sacramento, que é meu orientando de doutorado, foi meu aluno neste curso e compartilha comigo a paixão intelectual pelo pensamento do Bakhtin. Como o curso foi muito prazeroso para ambos, numa de nossas conversas pensamos que seria interessante que houvesse algum desdobramento. E foi assim que surgiu a ideia da publicação. Na realidade, o livro não surgiu num contexto de pesquisa, mas de ensino.
Olhar Virtual: Como foram selecionados os artigos que compõem o livro?
Ana Paula Goulart Ribeiro: No Brasil, a obra de Bakhtin se tornou conhecida, sobretudo, através de seus tradutores e comentaristas europeus. Seus conceitos chegaram aqui no final dos anos 1970 e 1980, principalmente pela crítica literária, pela teoria da linguagem e pela Análise de Discurso de tradição francesa.
Mas, depois dessa apropriação de Bakhtin por pesquisadores francófonos, intelectuais de muitas outras partes do mundo e, especialmente, anglo-saxões, começaram também a interpretar e a utilizar, em diferentes contextos de estudo e pesquisa, os conceitos bakhtinianos. Mas, entre os brasileiros, os autores que seguem a tradição francesa são muito mais difundidos e conhecidos.
No país, os estudos anglo-saxões sobre Bakhtin, ou baseados nele, apenas mais recentemente estão começando a ser traduzidos. E foi pensando nisso exatamente que selecionamos os artigos para o livro. Nossa ideia era reunir os principais pensadores da obra de Bakhtin dessa tradição, que é mais recente e menos conhecida no Brasil. O objetivo é ajudar a difundir esses trabalhos, tão interessantes, por aqui.
Olhar Virtual: Quais as novidades da abordagem anglo-saxã do livro, em oposição às publicações baseadas nas interpretações da obra bakhtiniana por autores francófanos?
Ana Paula Goulart Ribeiro: A leitura de Bakhtin que os autores francófonos fizeram foi profundamente marcada pelo contexto do Estruturalismo, que ainda vigorava de maneira hegemônica no mundo intelectual nos anos 1970 e 1980. Seus trabalhos começaram a ser traduzidos e conhecidos no Ocidente exatamente quando estava se dando um caloroso debate em torno dessa corrente de pensamento.
Aliás, não tenho dúvidas do papel fundamental que Bakhtin teve no desmonte de alguns pressupostos fundamentais do Estruturalismo. Suas ideias possibilitaram reintroduzir, nos estudos da linguagem e da cultura, os chamados "recalcados": o sujeito e a história. A abordagem anglo-saxã se dá num outro contexto, já pós-estruturalista, o que permite uma exploração mais profunda das múltiplas possibilidades teóricas dos conceitos de Bakhtin.
Eu diria que, agora, a discussão é menos comprometida com grandes questões e, por isso, mais experimental. E, nesse sentido, os estudos sobre mídia (cinema, televisão etc.) ganharam uma relevância grande.
Olhar Virtual: Qual a relevância dos conceitos bakhtinianos para o estudo da comunicação?
Ana Paula Goulart Ribeiro: Toda. Bakhtin é o filósofo da comunicação por excelência. Para ele, o diálogo tem valor ontológico: nada existe que não seja na relação com o outro. Isso é pura comunicação. É a comunicação pensada como uma dimensão fundadora da existência. É a comunicação levada ao extremo, diria eu.
Além disso, conceitos cunhados por Bakhtin ― como polifonia, carnavalização, cronotopo ― são extremante ricos para a análise de produtos culturais variados.
Olhar Virtual: Quais outras áreas de conhecimento se apropriam dos conceitos de Bakhtin?
Ana Paula Goulart Ribeiro: Os conceitos bakhtinianos são fundamentais para pensar várias dimensões da existência e, por isso, são muito ricos para diferentes abordagens disciplinares. A Psicanálise, a Estética ou a Teoria da Arte, os Estudos Literários, a História, Antropologia, todas essas disciplinas se apropriam direta ou indiretamente do legado bakhtiniano. O pensamento de Bakhtin forma uma das principais matrizes teóricas dos chamados Estudos Culturais ― corrente teórica de grande penetração no mundo intelectual contemporâneo.
Olhar Virtual: Quais principais desafios encontrados na aplicação do pensamento bakhtiniano em um contexto de “crise das teorias sociais”, conforme consta no texto de introdução do livro?
Ana Paula Goulart Ribeiro: O pensamento do Bakhtin está, me parece, ao mesmo tempo, profundamente sintonizado e em oposição ao pensamento pós-moderno. Não acreditamos mais nas teorias gerais, nos grandes modelos explicativos e totalizadores do mundo, numa única verdade. E sobre isso Bakhtin já falava nas primeiras décadas do século XX.
Ele foi o filósofo da liberdade, da diferença. Atribuía importância central ao não finalizado, mas ao “vir-a-ser”, ao devir. Não acreditava numa verdade única e apostava no papel produtivo do paradoxo e do conflito – como a gente fala na introdução do livro. Mas, ao mesmo tempo, o pensamento bakhtiniano é anti-individualista e resgata alguns princípios básicos do humanismo, como a ideia de que o ser não se basta, de que ele necessita do Outro, sempre. Eu gosto muito disso.