Durante as eleições para a Presidência dos Estados Unidos, Barack Obama tinha como proposta realizar uma reforma no sistema de saúde do país. Entre as medidas, estava a criação de uma empresa estatal de saúde para atender à imensa maioria da população não contemplada pelo atual regime. Atualmente, estima-se que cerca de 45 milhões de cidadãos estadunidenses não possuem qualquer cobertura de saúde. Apenas idosos e a população economicamente desfavorecida contam com um auxílio do Estado, com programas como o Medicaid e o Medicare. Os atuais planos de saúde negam cobertura a pessoas com doenças preexistentes, baseados em toda sorte de alegações.
A proposta assombrou as empresas do setor, pois criaria uma concorrência, através da oferta de valores mais acessíveis. Já eleito, o supremo mandatário da Casa Branca vem encontrando muitas dificuldades para aprovar o projeto, em um confronto acirrado com a oposição republicana. Criou-se um clima de terrorismo contra o presidente, com campanhas que visam desqualificar o projeto ao chamar Obama de “socialista”, palavra aviltante no país-sede do capitalismo mundial.
No último dia 16, o senador democrata Max Baucus, da Comissão de Finanças do Senado, apresentou uma proposta de reforma ao custo de US$ 856 bilhões, ao longo de dez anos. O texto, modificado para “agradar” aos republicanos, não inclui a criação da empresa estatal de saúde, mas sim de cooperativas sem fins lucrativos gerenciadas pelos próprios segurados, calculados em torno de 30 milhões de cidadãos a serem atendidos.
A proposta, contudo, ainda será votada pelos parlamentares e os analistas preveem dificuldades. Em 1993, Bill Clinton tentou implementar reforma semelhante, incumbindo sua esposa, Hillary, de angariar simpatizantes. A reação das seguradoras de saúde foi grande: grandes investimentos foram feitos pelas empresas do setor, acompanhados de campanhas publicitárias e lobbies junto aos políticos da oposição.
Dezesseis anos depois, a situação não é diferente. Obama precisará enfrentar a resistência formada pelo cartel das empresas privadas de saúde, os políticos da oposição e a opinião pública manipulada pela mídia, que reforça a associação ao centralismo de Estado e ao termo “social”, numa torpe vinculação ao regime soviético.
Para analisar o atual cenário da saúde nos Estados Unidos, o Olhar Virtual conversou com Lígia Bahia, professora-adjunta do Núcleo de Estudos de Saúde Coletiva da UFRJ, e Maria Lucia Teixeira Werneck Vianna, professora-adjunta do Instituto de Economia.
“Os seguros, aqui como lá, possuem  elevados gastos administrativos e custos de transação, e negam sistematicamente  coberturas para doentes graves.”
  
“As principais razões pelo fato de um país desenvolvido como os Estados Unidos não possuir um sistema de saúde gratuito podem ser atribuídas à ética liberal da sociedade americana e à concepção hegemônica nos Estados Unidos sobre saúde - que não foi historicamente considerada objeto de políticas universais. Enquanto a educação básica obteve o estatuto de direito de cidadania - ou seja, é concedida à população gratuitamente pelo governo -, a saúde seguiu sendo tratada como tema da esfera privada, isto é, responsabilidade das famílias e de empresas empregadoras, e não do Estado.
A criação de uma estrutura gratuita poderia ter um impacto imenso em relação à melhoria das condições de saúde e de vida da população. Os EUA apresentam, atualmente, indicadores inferiores a de vários países europeus e está às voltas com um grande desafio: uma epidemia de obesidade. O fato é que uma parcela considerável da população não possui acesso regular à rede assistencial e aqueles que têm planos e seguros privados também não encontram um atendimento integral e contínuo à saúde, pois estes se caracterizam por uma forte ‘mercadorização’.
O preconceito da população em relação a uma medicina socializada e um certo temor da intervenção por parte do Estado se dão pelo fato de a economia americana ter se erguido a partir da constituição de um poderoso mercado interno. As formas de convivência em sociedade que formaram esse padrão de desenvolvimento foram sustentadas por valores e formas de sociabilidade de natureza comunal – com certa autonomia em relação ao Estado -, e não estatal. Também é importante ressaltar que há ainda vestígios das divergências com os países socialistas e, de lambuja, com qualquer perspectiva de ampliação explícita da intervenção estatal.
O questionamento em relação à força política do presidente Barack Obama diante dos republicanos, seus opositores, é crucial. Desde do início do mandato, o líder vem se cercando de inúmeros dispositivos para enfrentar os adversários. O fato de o orçamento para a reforma ter sido aprovado pelo Congresso é um sinal bastante elucidativo. A crise econômica e o desemprego - no site da Casa Branca, por exemplo, há diversos textos e materiais gráficos de esclarecimento, que mencionam a atual situação de pessoas que perderam seus empregos - vêm sendo fartamente explorados por Obama como argumento a favor da reforma do sistema de saúde. A maior parte do segurados por planos de saúde só os tem porque as empresas onde trabalham arcam com muitas despesas.
Entretanto, se o presidente norte-americano vem ganhando espaço, as seguradoras de saúde, em contraposição, já estão reagindo com muita virulência, inteligência e gastos em publicidade. Há uma campanha, por exemplo, orquestrada pelas seguradoras, que tenta assustar os idosos dando a entender que estes irão perder seus atuais benefícios. Porém, os planos não necessariamente ficarão mais baratos. A previsão dos formuladores da reforma é a de que os gastos com saúde nos EUA deixem de crescer tanto, em função de mudanças no modelo de atenção e redução de superposições e desperdícios. O fornecimento de serviços seria realizado mediante uma rede articulada e integrada, e não mais baseada na demanda espontânea e eventual.
Se fizermos um paralelo com a situação da saúde brasileira, notaremos que parte do nosso sistema de saúde - aquela que tem os planos de saúde como núcleo de cobertura - está caminhando a passos céleres para ser um pobre e mini-EUA. Os seguros, aqui como lá, possuem elevados gastos administrativos e custos de transação, e negam sistematicamente coberturas para doentes graves. No Brasil, a opinião pública também fica apreensiva: por um lado estar vinculado a um plano de saúde é sempre melhor do que não estar. Entretanto, as seguradoras possuem uma credibilidade muito baixa. É o fato de nós possuirmos um sistema universal de saúde que nos diferencia.”
Maria Lucia Teixeira Werneck Vianna
    Professora-adjunta do Instituto de Economia da da UFRJ     
    
“A reforma não tem  nada de socialista. Ela mantém os pilares básicos da economia de mercado no  setor. Como a cultura individualista e liberal é muito forte nos EUA, apelos  como esse têm penetração na população.”
“Os Estados Unidos são um dos  países que têm gastos em saúde mais elevados do mundo. E são gastos públicos e  privados também, pois o Estado subsidia o setor privado.  Comparando os  gastos com a cobertura, verifica-se que essa última é quase ridícula, em termos  de país desenvolvido.  A indústria privada de saúde teme a concorrência  com o setor público. Contudo, ela não irá à falência como tem se especulado. A  ameaça da falência é parte do lobby dos planos privados para manter a situação  como está. Eles terão que se adaptar à concorrência com o setor público, e isso  pode significar aumentar a cobertura, oferecer procedimentos que não são oferecidos  etc. Além disso, pode-se supor que a ampliação da cobertura venha a incidir  positivamente no mercado de trabalho, gerando empregos, e também nos setores  industriais relacionados à saúde, como equipamentos, medicamentos etc. 
A competição é a lógica do mercado e o risco faz parte dessa lógica. Os  planos  e empresas de seguro de saúde estão acostumados a facilidades. Com  a reforma serão obrigados a correr o risco. Obama está cumprindo o  papel que lhe cabe como estadista: procurar beneficiar contingentes mais amplos  da população. O interesse público não constitui a meta das empresas privadas.
    
Já a viabilidade dessas  iniciativas está relacionada à capacidade de negociação do governo. Não há  fórmula a priori. Os lobbies favoráveis e contrários às mudanças estão se  mobilizando e é no Congresso que as resoluções serão tomadas. Mas num sistema  presidencialista, o fator ‘carisma’ do presidente é muito importante. Obama  acaba de ganhar o Nobel da Paz e esse é um trunfo que pode contribuir para as  negociações. 
    
Sobre as acusações dos  republicanos, pode-se dizer que a reforma não tem nada de socialista. Ela  mantém os pilares básicos da economia de mercado no setor. Este é outro  argumento ideológico dos lobbies das empresas de seguro privado. Como a cultura  individualista e liberal é muito forte nos EUA, apelos como esse têm penetração  na população. Mas a proposta do governo não é sequer a de um sistema público  universal, tipo SUS, ou tipo Sistema Nacional de Saúde inglês. Por isso, não  creio que a reforma, se aprovada, venha a alterar as bases da concepção de  política social vigente nos EUA. Trata-se de uma concepção arraigada na cultura  americana, sobre cujas premissas repousa a ideia de que é o indivíduo, pelo seu  trabalho, pela sua competência, que deve cuidar de si mesmo. Esse postulado  individualista é avesso ao coletivo, ao Estado, o que não quer dizer que o  Estado americano seja fraco. Afinal, ele domina o mundo. Mas é esse postulado  que faz com que a noção de cidadania, nos EUA, seja uma noção calcada nos direitos  civis, nas liberdades individuais, e não nos direitos sociais, como é na  Europa. A intervenção do Estado americano no social - na saúde, na  assistência social, na regulamentação do trabalho etc. - continuará a ser uma  intervenção focalizada, seletiva, pontual.
    
Na área da saúde, por exemplo, já  houve a tentativa de intervenção por parte do Estado. Clinton, quando assumiu o  governo no início dos anos 90, tentou uma reforma, liderada por Hilary Clinton.  Foi derrotado no Congresso.  A força - econômica e política - das empresas  de saúde é enorme, e encontra respaldo na cultura predominante entre os médicos  (que são formados para o mercado) e suas associações, que sempre ofereceram  resistência à ampliação do sistema público. Mas encontra apoio também em parte  considerável da população - uma imensa classe média individualista. Estes são  os motivos da existência de um expressivo contingente populacional sem  cobertura de saúde, caso único num país desenvolvido.”