Quinze anos depois do lançamento do Plano Real, que contribuiu para o controle da inflação, o papel do ex-presidente Itamar Franco, personagem central no momento de consolidação democrática no país, é revisitado para a análise das novas gerações. O legado da gestão comandada pelo político mineiro está no livro Era uma outra história: política social do governo Itamar Franco: 1992-1994, de autoria de Denise Paiva, assessora de Assuntos Sociais da Presidência da República naquele período.
Reunindo reflexões pessoais da autora, documentos históricos e depoimentos de políticos e representantes de movimentos sociais, a obra lançada na última semana no Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ aborda também a participação de Itamar Franco para a manutenção da governabilidade do país. Ele assumiu a Presidência num momento em que o Brasil vivia uma grave crise institucional com o impeachment do presidente Fernando Collor de Mello, primeiro presidente eleito democraticamente após 21 anos de ditadura militar.
Segundo Denise, a governabilidade propiciou as condições necessárias para a formulação de um plano econômico que representou a melhor das políticas sociais. “Combater a inflação, que corroía o salário do mais pobre, foi uma grande política social.” Confira a seguir a íntegra da entrevista com a autora:
Olhar Virtual: Como surgiu a ideia do livro?
Denise Paiva: Como assessora de Assuntos Sociais da Presidência da República, tive uma participação muito atuante na formulação das políticas sociais do governo Itamar Franco. Meu gabinete era a ponta de relação entre o Estado, o governo e a sociedade civil. Foi um momento muito importante e com experiências muito inovadoras. Conseguimos ter um modelo de participação da sociedade civil inédito do ponto de vista da transparência, da liberdade e da igualdade. A sociedade civil teve muita voz em seu governo. Aos poucos fui percebendo que toda aquela história foi para o limbo da política e da academia. Guardei muitos documentos e achei importante construir uma memória do governo Itamar.
Olhar Virtual: A que atribui esse “esquecimento”?
Denise Paiva: São muitos fatores. Pecamos muito na política de divulgação das ações. Acho que houve uma certa “mineiridade” nesse sentido. Outra questão fundamental é que a política social do governo Itamar apontava para um rumo emancipatório. Começava com a questão de combate à fome, mas também colocava a questão da reforma agrária, do trabalho, da educação de qualidade. Num determinado momento, a política social gerou condições para uma estabilidade econômica, mas que também feria os cânones da economia, que buscava manter as políticas sociais dentro dos ditames dos organismos internacionais. Houve também um esquecimento da figura do presidente Itamar como político. Porém, muitas coisas que o governo dele fez foram depois apropriadas por outros que o sucederam. O que importa é que após 15 anos conseguimos resgatar muito da nossa história.
Olhar Virtual: No livro, você também inclui entrevistas com personalidades que participaram direta ou indiretamente do governo Itamar? Quem são essas pessoas e por que essa opção de inseri-las na obra?
Denise Paiva: A minha primeira entrevista foi com Plínio de Arruda Sampaio aqui na UFRJ, no campus da Praia Vermelha. Daquela entrevista saí com a seguinte certeza: tenho uma responsabilidade cívica e ética e não posso transferi-la. O livro tem depoimentos de Alexis Stepanenko (ex-ministro do Planejamento), Walter Barelli (ex-ministro do Trabalho) e Murilo Hingel (ex-ministro da Educação), dentre outros. Peguei toda uma composição de governo, mas também da sociedade civil para reconstruir essa história. Entraram no livro Adair Rocha (atualmente representante do Ministério da Cultura no Estado do Rio de janeiro) e Celso Japiassu (coordenador das campanhas sociais do governo Itamar Franco). Conduzo o livro com minhas reflexões, com documentos que ficaram guardados, mas principalmente com a voz daqueles que fizeram essa história.
Olhar Virtual: O presidente Itamar teve um papel importante na manutenção da governabilidade num período delicado da história do país, com o impeachment do presidente Fernando Collor. Fale-nos mais sobre esse aspecto.
Denise Paiva: O Brasil deve muito ao presidente Itamar. Esse reconhecimento está começando a ser feito. Ele assumiu o país numa situação de debilidade institucional e com uma democracia muito frágil. Tínhamos tudo para dar errado, tudo para ter um retrocesso. No entanto, ele conduziu de uma forma sábia e principalmente a partir de uma relação muito digna e transparente com o Congresso. Ele conseguiu essa governabilidade também com os mecanismos de democracia participativa. Essa governabilidade deu as condições para um plano econômico que foi a melhor das políticas sociais. Combater a inflação, que corroía o salário do mais pobre, foi uma grande política social. Em pouco tempo, conseguimos fazer a transição e devolver a democracia aos governos subsequentes.
Olhar Virtual: Alguns críticos consideram que a gestão Itamar também teria um viés mais populista, referindo-se, por exemplo, ao relançamento do Fusca, iniciativa que não obteve êxito. Também percebe contradições do governo nesse período?
Denise Paiva: O Fusca foi apenas um símbolo. O que houve foi um processo de aquecimento da indústria automobilística, do carro popular. Ao contrário, não tínhamos nada de populismo. O programa do leite foi reeditado na perspectiva de projeto dentro da política de saúde. O melhor combate à desnutrição não é o remédio, mas o leite, o alimento. Ele dizia que não podíamos fazer demagogia com a pobreza. Tínhamos muito essa preocupação em não misturar questões eleitorais com política social.
Olhar Virtual: Na sua avaliação, quais são as continuidades e distanciamentos se analisarmos as políticas sociais dos governos que o sucederam?
Denise Paiva: O Programa Bolsa Família é o grande carro-chefe da política social do governo Lula. A base legal do Bolsa Família foi dada pela Lei Orgânica da Assistência Social, de iniciativa do governo Itamar, acatando uma sugestão da sociedade civil. Agora esse princípio vinha da ideia de incentivar o emprego, o trabalho. Ou seja, o governo dá uma condição mínima, mas a partir dessa condição a pessoa vai ter outro tipo de inclusão. O programa Bolsa Família apresenta uma forma de gestão que está um pouco na contramão do crescimento econômico, do desenvolvimento, do trabalho. Isso é problemático. Temos que aprofundar. Mas o Brasil tem legislações muito avançadas na área. Somos referência para muitos países. Temos muitos problemas na execução, mas temos que lutar por nossas leis. Essa vontade coletiva não se constrói nos espaços políticos eleitorais, mas nos espaços autônomos, principalmente nas universidades.