Nas últimas semanas, o mundo voltou os olhos novamente à região do Tibete. Uma série de protestos eclodiu depois que cerca de 500 monges do mosteiro de Deprung realizaram uma manifestação pelo 49º aniversário do Levante de Lhasa, episódio ocorrido em 1959, que levou o 14º Dalai Lama, Tenzin Gyatso, ao exílio.
A manifestação, que culminou na prisão de monges pela polícia chinesa, veio acompanhada de uma onda de violência. Em poucos dias, foram verificados na região incêndios criminosos e saques a estabelecimentos comerciais. O governo de Pequim anunciou a morte de dez pessoas, mas as autoridades tibetanas contabilizam 80 mortos durante os confrontos.
Insurgências como esta são comuns desde que a China anexou a região a seus domínios, em 1950. O controle chinês nunca foi aceito pelos tibetanos, que sofreram, ao longo dos anos, duras tentativas de descaracterização cultural e religiosa. Por conta da Revolução Cultural chinesa, realizada em 1960, aproximadamente seis mil monastérios e centros culturais foram destruídos. O Tibete foi invadido por um grande número de chineses, parte de uma estratégia do governo de Pequim para minimizar o nacionalismo tibetano.
A proximidade dos Jogos Olímpicos de Pequim, em agosto, torna os protestos atuais especialmente importantes. Para os tibetanos, esse é o momento de chamar a atenção da comunidade internacional para a sua causa. Além disso, um dado novo diferencia os confrontos das resistências ocorridas no passado: a participação ativa de monges budistas.
Historicamente, o budismo é uma religião pacifista, que prega o desapego às causas materiais e o amor a todos os seres vivos. Os últimos acontecimentos no Tibete, entretanto, envolveram atuação efetiva de monges, o que levou o Dalai Lama a ameaçar renúncia.
Para lançar luz sobre o que está acontecendo no Tibete, o Olhar Virtual entrevistou Alexander Zhebit, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS/UFRJ) e integrante do Laboratório dos Estudos do Tempo Presente. Ele comentou os principais interesses da China na região e falou sobre a possibilidade de um afrouxamento no controle de Pequim sobre o Tibete. Entrevistamos também Frank Usarski, professor de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC-SP, que explicou a mudança na postura de alguns líderes espirituais do budismo. Confira.
Os protestos ocorridos recentemente foram motivados, em primeiro lugar, pela proximidade dos jogos olímpicos, pois os tibetanos entendem neste um momento para divulgar o descontentamento da população. Em segundo lugar, eles podem ser encarados como uma certa continuidade daquilo que aconteceu na província de Kosovo, nos Bálcãs. Ali, houve uma declaração unilateral de independência, motivadora para todos os movimentos étnicos do mundo, na medida em que eles passaram a encarar o momento atual como propício para expressões do desejo de independência.
Os tibetanos sempre sentiram essa ânsia pela independência. Mas a China, muito ciumenta da sua integridade, vê qualquer momento de etnicidade, de expressão de um movimento étnico, como uma violação da soberania do país. Os chineses não vão abrir mão dessa integridade. O que percebemos é exatamente o processo inverso.
O governo chinês acredita que a China continental e as províncias a ela ligadas compõem uma única China. Existe apenas uma China, só que com diferentes expressões. Por isso qualquer manifestação de tendências separatistas ou qualquer insistência de países no sentido de requerer autonomia é recebida de maneira muito hostil. Conferir mais direitos à população tibetana significa enfraquecer, mais tarde, a vinculação dessa província à China.
A participação econômica do Tibete não é grande; por causa do difícil acesso à região, quase não há atividade econômica ali, só mesmo a agricultura e o turismo. Para os chineses, o Tibete não é uma questão econômica. Eles têm uma grande intenção de proteger suas fronteiras. Ceder uma região para tibetanos, população pequena se comparada com a chinesa, seria uma perda enorme e nenhum estado permitiria uma fragmentação desse tamanho.
Importante dizer que o tipo de controle exercido pela China ali não é único. Nenhum país do mundo dispensa um tratamento benevolente para a questão do separatismo. O separatismo sempre traz violência e cerceamento dos direitos. A China não é uma exceção; essa reação é comum a qualquer país.
Muitas vezes, afirma-se que o budismo seja uma religião “ultrapacifista”. Basta um olhar em textos clássicos, como por exemplo, alguns de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) para perceber que essa avaliação idealista do budismo tem uma longa tradição no discurso ocidental.
Não nego que grande parte da História confirma a atitude pacifista do budismo e que, devido à sua atitude harmoniosa, o Dalai Lama realmente merece o Prêmio Nobel da Paz. Por outro lado, o budismo é tanto um produto da cultura como o cristianismo ou o islamismo, e onde seres humanos constroem seus mundos há, inevitavelmente, desejos mundanos e interesses políticos em jogo.
No Tibete, a situação se torna ainda mais sensível pelo fato de a fuga do Dalai Lama ocorrer em 1959 e, desde então, a população não ter sentido nenhum progresso na “causa tibetana”. Pelo contrário, a erosão da cultura tibetana mediante o deslocamento de chineses e outros procedimentos continua assustadoramente em andamento e muitos integrantes da atual geração de tibetanos nem conhece pessoalmente o Dalai Lama. Tudo isso gera uma grande frustração naqueles habitantes que ficaram. Essa frustração pode levar a ações de resistência explícita contra os ocupadores em momentos oportunos. Nesse sentido, além da publicidade garantida pela proximidade das Olimpíadas em Pequim, a recente revolta dos monges em Mjanmar foi um estimulador importante.
No discurso de budistas contemporâneos, o termo "budismo engajado" é usado no sentido mais genérico, uma vez que alude a um budismo que não se contenta apenas com a "salvação" do praticante propriamente dito, mas inclui no seu repertório espiritual a preocupação com as condições políticas e sociais que dificultam o desenvolvimento espiritual individual ou, até mesmo, impedem que indivíduos oprimidos por elementos como injustiça ou pobreza descubram o budismo como um caminho de libertação.
Por trás dessa definição está o conceito de compaixão. Nesse sentido o budismo sempre foi e será no futuro uma das correntes de um budismo "engajado". Vale a pena lembrar o que um monge amigo do Dalai Lama disse quando foi perguntado sobre a experiência mais difícil durante os anos de prisão na China: "Meu maior medo foi perceber que eu poderia perder minha compaixão com meus atormentadores."