Ilustração: Caio Monteiro |
Orlando Zapata Tamayo, pedreiro de profissão, preso político de Cuba há três anos e condenado a mais de 30, faleceu semana passada, após passar 85 dias em greve de fome por protesto a supostas agressões e torturas sofridas na cadeia, segundo afirma sua família Apesar de nada ter sido provado, a mãe do rapaz, Reina Tamayo, afirma que sua morte foi premeditada pelo governo, que não lhe deu assistência necessária. Em contrapartida, Raul Castro, presidente de Cuba, alega que o prisioneiro foi levado aos melhores hospitais da ilha e que, no entanto, recusava-se a terminar com o protesto.
Cuba é um país que divide opiniões. Enquanto muitos consideram a forma de governo de Raúl Castro uma ditadura, outros elogiam os avanços na Saúde e Educação conquistados pela Revolução de 1959, comandada por Fidel Castro. Assim, após sua morte, Zapata está sendo visto como um mártir, mas também como traidor mercenário. Para esclarecer as questões sobre o falecimento do prisioneiro, o Olhar Virtual conversou com Zuleide Faria de Melo, presidente da Associação Cultural José Martí - entidade de solidariedade à Cuba - e professora aposentada do IFCS/UFRJ e com Manuel Sanches, professor do Departamento de Ciências Políticas do Instituto de Filosofia e Ciência Sociais(IFCS/UFRJ).
Zuleide Faria de Melo
presidente da Associação Cultural José Martí e professora aposentada da UFRJ
“Zapata foi atendido nos melhores hospitais e se recusou a terminar a greve de fome. Não é a mesma coisa de uma criança no Brasil, que morre de fome antes de um ano de idade e não consegue sequer ter a oportunidade de se tornar dissidente. Acredito que ele achou que valia a pena pagar esse preço.”
“Eu nunca soube de ninguém que afirmasse e provasse que há tortura em Cuba. Assim como não há nenhuma prisão arbitrária, como nenhum desaparecimento de prisioneiro, nem presos torturados, passando fome etc. Isto não existe nas prisões cubanas. Dizer que há presidiário sendo torturado é uma infâmia, principalmente por isso que se chama delito de opinião, em que não se tem um criminoso que matou milhares, mas alguém que pensa diferente e quer impor suas idéias. Por outro lado, é verdade também que Cuba está vivendo um momento bastante difícil. Então, se toda população está passando por momentos de dificuldade - inclusive muito em função do bloqueio, que não acabou no governo do atual presidente americano, Barack Obama, pelo contrário - naturalmente, nas prisões isso se reflete.
Os dissidentes são outro caso. Eu lamento que o cidadão tenha morrido. Na realidade, creio que ele se propôs a transformar-se em mártir - e está conseguindo. Sua mãe acusa o governo de tê-lo matado quando, na realidade, isso não ocorreu. O Estado não moveu uma palha para que ele morresse. Por outro lado, ela diz que ele morreu com 42 anos e não deixou mulher e filho. Ninguém pode se responsabilizar por ele não ter casado dez vezes - em Cuba pode se casar e descasar quantas vezes quiser - ou ter tido filhos - não há nada que condene mulheres solteiras a terem filhos -, afinal ele não estava preso há 40 anos, mas há três, já tinha 39 e dava tempo de ter tido alguns filhos e mulheres. Vamos colocar as coisas como elas são na realidade. Eu tenho impressão de que deve ter sido uma decisão dele, que eu quero respeitar, mas também não aceito que se faça disso um uso indébito.
Isso posto, não quero fazer a defesa ou dizer que o governo cubano talvez tenha se descuidado um pouco ao dar uma assistência maior para que ele tivesse uma greve de fome assistida, mas o presidente Raul Castro declarou que Orlando Zapata foi atendido nos melhores hospitais de Cuba e se recusou a terminar a greve de fome. Então, é um ato de vontade. Não é a mesma coisa de uma criança no Brasil, por exemplo, que morre de fome antes de um ano de idade e que não consegue sequer ter a oportunidade de virar adulto para se tornar dissidente disso ou daquilo. Acredito que o rapaz achou que valia a pena pagar esse preço. Para as autoridades cubanas, teria sido mais simples um pouco, mesmo sendo acusado de tortura, enfiar comida na boca dele à força, pois era o único meio, já que ele não atendeu nenhuma das recomendações. Eu lamento a morte dele como lamento a morte de qualquer pessoa: que morre de bala perdida no Rio de Janeiro ou vítima de assalto, que morre por insuficiência de alimentação, de atendimento medico.
Acho que quem vive em um país onde isso é o que vige sempre, o que é o habitual, não pode agora querer transformar um cubano porque fez greve de fome e por acidente faleceu em um mártir e aplaudir. Eu acho que alguém precisa dizer as coisas como elas são e elas são o seguinte: Cuba, como qualquer governo do mundo, tem uma dada legislação, com um código civil e código penal - que no Brasil não falta - que diz o que pode e o que não pode, assim como todas as leis conhecidas no mundo Eu não tenho conhecimento de nenhuma lei, em algum sistema minimamente democrático, que não seja assim. Não se pode culpar o governo de Raúl Castro por uma pessoa que assumiu individualmente uma proposta para mostrar a sua oposição ao governo e ao Estado cubano. É um direito? Sim, é um direito. Como em qualquer lugar do mundo, esses direitos têm também algumas sanções.
Outra questão é Guantânamo, é território cubano apropriado pelos Estados Unidos, desde o início do século XX. Foi transformado, posteriormente, em um grande presídio, onde há pessoas que nunca tiveram sua prisão declarada - nem o motivo explicado - e foram barbaramente torturados. Direitos humanos só têm que ser cumpridos em Cuba? Os Estados Unidos, que mantém Guantánamo e que na guerra do Iraque têm matado vários civis, não? Então, governos que mantêm isso como sua forma de gestão não têm moral de acusar ninguém de qualquer coisa.
Esse foi um incidente ruim para Cuba, em um momento ruim, foi um acidente de percurso. Além de 200 presos de opinião, possui 11 milhões de habitantes que estão trabalhando, tentando construir o país, resolver os problemas e que são os primeiros a reclamar daqueles que não fazem isso. Eu fui a Cuba diversas vezes e vi os populares furiosos. Inclusive, ficavam com Fidel Castro não por ele ser arbitrário e ditador - nunca vi alguém dizendo isto por lá -, mas porque eles pensavam ‘estamos trabalhando e há uma meia dúzia de malandros que nada fazem e querem viver às nossas custas e não queremos isso‘. Quando a Espanha e os Estados Unidos começam a criticar Cuba, acaba sendo uma falta de respeito com o povo cubano, que trabalha demais, que passa por dificuldades gigantescas, inclusive por causa do bloqueio. O bloqueio é criminoso, é um atentado à vida.
O próprio presidente Raul Castro desceu de seu pedestal e disse honestamente que lamenta por ter sido um cubano a morrer nessas condições, mas que também não poderia impedir que uma pessoa que morre por um ato de vontade faça qualquer coisa. Por outro lado também, em 50 anos da revolução, esse é o primeiro caso que acontece, o que não é pouco. São 50 aos de luta, de trabalho, de vitórias quase inimagináveis de Cuba e do povo cubano, que é um povo que trabalha, mas continua alegre, rindo e satisfeito e dizendo o seguinte: ‘nós queremos construir nosso país e queremos o direito de fazer isso. Em ingerência de qualquer outro governo, seja qual for.’
A grande imprensa mundial - não por culpa do jornalista - está totalmente dominada por alguns setores da sociedade, alguns grandes empresários ,além de controlarem a imprensa, são donos também de vários outros empreendimentos econômicos. Naturalmente, nesse quadro, não podemos sequer falar de imprensa livre, porque isso implicaria, em primeiro lugar, que houvesse a liberdade de manifestar opiniões e não uma opinião única. Por exemplo, sou assinante de dois jornais. Eles repetem mais ou menos a mesma coisa que está sendo dita em tudo quanto é lugar. É uma matriz geradora da notícia. Desse ponto de vista eu quero começar questionando a famosa liberdade de imprensa: não é dizer o que o dono da empresa quer, mas, sim, colocar os fatos para que quem ouve, lê ou vê possa estar informado o suficiente para formar uma opinião.
Não há como afirmar que as pessoas estão recebendo informações corretas. Acredito que essa seja a primeira grande questão. Só para que a gente entenda: boa parte desse alarde que está sendo feito em relação à morte de Orlando Zapata é em função desse processo, porque o jornalista da grande imprensa - que tem poucos donos - não possui liberdade para dizer aquilo que pensa. No Brasil, nove famílias concentram, dirigem, são proprietárias do grosso da produção de comunicação, informação e propaganda, enfim, de tudo o que sai na imprensa nacional. Sem falar que, por outro lado, as agências de notícias, que distribuem as notícias, não são mais que cinco ou seis.”
Manuel Sanches
professor do Departamento de Ciências Políticas do Instituto de Filosofia e Ciência Sociais(IFCS/UFRJ)
“As alegações vagas e triviais para as prisões, do tipo: mau comportamento, distúrbio, desacato, não indicam a certeza de consequentes torturas após a prisão, mas são uma demonstração de que o governo está se sentindo ameaçado e que, portanto, pode usar métodos violentos de repressão.”
“Não se pode dizer que o governo cubano matou Zapata, mesmo considerando rumores de que ele não tenha recebido toda a atenção médica que devia. Da mesma forma, não se pode dizer que o governo americano tenha induzido o dissidente à morte ou que, no passado, tenha matado os monges budistas que se incineravam em praça pública em Saigon. Mas a greve de fome é um ato político que visa responsabilizar o inimigo, e o inimigo de Zapata era o governo cubano, assim como no passado o inimigo de Gandhi era o Império Britânico. Por outro lado, já houve outros casos de morte de prisioneiros políticos por greve de fome em Cuba, e, por isso, já não se pode dizer que este é um caso específico.
Sobre a possibilidade de torturas nas prisões cubanas, há que se considerar que, em governos ditatoriais ou mesmo em áreas onde a liberdade de imprensa é limitada, as evidências são difíceis de se obter. Mas há indícios. Os ditadores brasileiros, por exemplo, deixaram fortes indícios de que admitiam a tortura como prática política. Os soldados americanos também deixaram fortes indícios de que torturavam prisioneiros muçulmanos. A ausência da liberdade de imprensa, ainda que não seja uma prova de que exista tortura, é um indicador de que ela pode existir, mas que não é possível revelá-la. Neste caso, é possível encontrar alguns indicadores de que algo se passa nas masmorras: o impedimento de uma cobertura jornalística permanente é um mau sinal; o fato de que as notícias por fontes, mesmo não comprovadas, aumentem é outro mau sinal; a existência cada vez maior de rumores também; as alegações vagas e triviais para as prisões, do tipo: mau comportamento, distúrbio, desacato, não indicam a certeza de consequentes torturas após a prisão, mas são uma demonstração de que o governo está se sentindo ameaçado e que, portanto, pode usar métodos violentos de repressão.
Aliás, este foi o raciocínio de Yoanes Sánchez em um dos seus twitters: "El nerviosismo de los órganos represivos es visible ¿a qué le temen tanto?" (O nervosismo dos órgãos repressivos é visível. O que tanto temem?).
O aumento dos meios alternativos e da veiculação de informações críticas, numa situação em que não há liberdade de imprensa, pode ser mais um sinal de que a verdade está sendo escondida. Onde há fumaça há fogo, diz o empirismo, e onde há muita fumaça já passamos dos boatos à suspeita. Contudo, os meios alternativos de informação podem ser vistos com pouca ou nenhuma isenção. Já se disse que nas guerras a primeira que morre é a verdade. Isto é válido também para as lutas políticas acirradas e fundamentalistas. Considerar um militante político como “prisioneiro de consciência”, como a Anistia Internacional denominava Zapata, ou "mercenário" a serviço dos inimigos(americanos)como o considerava o governo cubano será verdade ou propaganda política dependendo de que lado se está. Nas lutas fundamentalistas não há meio termo; um cientista político fica em maus lençóis se pretender uma neutralidade científica.
Sobre a situação política na ilha, acho pouco provável que os protestos causem uma instabilidade em Cuba. Os governos totalitários, onde há total controle das manifestações contrárias, dificilmente são abalados em curto prazo. Em longo prazo, contudo, a morte de Zapata e os consequentes protestos se somarão a outros acontecimentos e criarão fissuras no sistema cubano. Imediatamente já haverá maior dificuldade nas negociações que estavam abertas com o governo americano de Obama. A Espanha socialista de Zapateiro já deu declarações de insatisfação e de desejo de que outros prisioneiros políticos sejam liberados, e a Igreja Católica já deu sinais de que a morte de Zapata é lamentável. Estes fatos se somam e podem causar maiores dificuldades para uma geração que imagina se perpetuar no poder em Cuba. Por ora, a tendência dos governantes cubanos pode ser a de se fechar ainda mais. É possível que o sistema cubano ainda possa resistir por alguns anos, talvez por uma década, mesmo sob forte pressão internacional. Isso pode levar, em curto prazo, a uma piora da situação dos presos políticos.
sistema político cubano se mantém como uma ditadura geracional e, agora, familiar. Uma geração chegou ao poder numa luta justa contra Batista (Fulgêncio Batista, ditador cubano derrubado pela Revolução em 1959)e com esperanças variadas: alguns queriam um liberalismo democrático, como o próprio Fidel nos seus discursos iniciais; outros queriam uma "ditadura do proletariado", como os comunistas cubanos. O fato é que o regime matou muitos, bandidos e torturadores no início, adversários e, finalmente, até mesmo aliados. O que pretendia ser a transformação do regime ditatorial de Batista em uma democracia, acabou sendo uma ditadura de um pequeno grupo, quase uma "monarquia" tirânica, quando Fidel resolveu estabelecer direitos sucessórios para o seu irmão. É claro que estas pessoas temem a violência do outro lado e se apegam ao poder discricionário, porque têm certeza de que serão perseguidos por seus adversários. Mas a vida acaba e as gerações passam, não há como o grupo cubano que ditou os rumos da revolução se manter vivo por muitos anos. Com a morte desta geração não há ideologia que mantenha o sistema cubano.”