Entrelinhas

A folia através dos livros

 

 

Thor Weglinski

Arte: Joyce Matos

 Carnaval é sinônimo de festa, dança e descontração. Mas também é sinônimo de pesquisa, estudos e livros. A grande amplitude que a folia  alcança em todo o Brasil desperta a curiosidade de acadêmicos de áreas como Sociologia, Antropologia, História e Geografia que tentam desvendar e descobrir os segredos que rondam esta festa que se tornou símbolo da cultura brasileira.

A Editora UFRJ tem no catálogo diversas obras que abordam o tema. Entre elas está Inventando carnavais: o surgimento do carnaval carioca no século XIX e outras questões carnavalescas (2005). O livro é de autoria de Felipe Ferreira, coordenador do Centro de Referência do Carnaval da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Ferreira analisa a relação do carnaval carioca com o espaço urbano e de que maneira a cidade influenciou na constituição da festa, além de abordar as transformações dos carnavais de Paris, Nice e Rio de Janeiro.

Os cronistas de momo - Imprensa e carnaval na Primeira República, do professor Eduardo Granja Coutinho (2006), da Escola de Comunicação (ECO/UFRJ), fala sobre o nascimento da crônica carnavalesca na República Velha (Primeira República). Coutinho analisa a importância dos cronistas na divulgação do carnaval e da consolidação da festa como símbolo da cultura nacional.

Maria Laura Cavalcanti, professora do Departamento de Antropologia da UFRJ, é a autora de Carnaval carioca: dos bastidores ao desfile”. A obra, de 2006, aborda a confecção de um desfile de uma escola de samba no Rio de Janeiro e mais especificamente o contexto sociológico e cultural de seu ciclo anual.

Outra obra é Escola de samba, ritual e sociedade, de José Sávio Leopoldi, que será lançada em março e é uma reedição do livro de 1978. Leopoldi, professor do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), busca interpretar os desfiles das escolas de samba, segundo ele, um “ritual de integração social”, sem exclusão de classes. Para escrever o livro, o autor estudou o ciclo anual da Escola Mocidade Independente de Padre Miguel.
 
Olhar Virtual: Sobre o que o livro trata?

Felipe Ferreira: O livro estuda o carnaval buscando entendê-lo pelo viés do espaço. Os processos culturais acontecem em algum lugar e esta relação do processo cultural com seu espaço é o que eu pretendo estudar. O carnaval carioca se forma dessa maneira muito por causa da forma da cidade e de suas relações espaciais. O tamanho da rua interfere no carnaval, pois delimita o tamanho dos carros alegóricos e cria um clima de festa por aglomerar as pessoas. Os grupos que desfilavam faziam roteiros e nos cruzamentos das ruas se encontravam e trocavam informações, como fantasias e batuques.
 
Eduardo Coutinho: O livro trata da relação entre imprensa e carnaval na Primeira República. Fala do papel que os cronistas foliões tiveram na construção da cultura popular brasileira, ou cultura nacional popular. Esses cronistas estavam presentes ao mesmo tempo nas rodas de samba e no mercado, nos jornais, na nascente indústria do entretenimento brasileiro. Eles eram os mais indicados para levantar a cultura popular naquele momento. A questão do livro é como a cultura marginalizada se tornou a cultura de exportação brasileira.

Maria Laura: O livro trabalha com todo o trabalho de confecção do carnaval. Acompanhei o ciclo todo da confecção anual do carnaval no início dos anos 90, principalmente a Escola de Samba Mocidade Independente de Padre Miguel, ainda com o bicheiro Castor de Andrade. O fio condutor da narrativa é a confecção do carnaval, desde o desenvolvimento do enredo pelo carnavalesco até a transformação ao longo do ciclo anual desse enredo nas fantasias e alegorias e na linguagem ritmo-musical do samba enredo.

Olhar Virtual: Como surgiu a ideia de escrever o livro?

Leopoldi: Estava fazendo um estudo sobre sociedades indígenas, mas era a época da ditadura, então era difícil viajar para fronteiras, muitas autorizações eram necessárias. Busquei outro tema, e como frequentava escolas de samba, me veio a ideia de falar dos desfiles e carnaval, original à época. Tinha um conhecido que frequentava a escola Mocidade Independente e lá fui muito bem aceito.

Olhar Virtual: Qual a importância da obra?

Felipe Ferreira: Criar e trabalhar uma nova forma de ver o carnaval, que normalmente é estudado pelo viés antropológico da festa e das relações sociais e pelo viés histórico da evolução. O livro trabalha com o espaço e centraliza mais na dinâmica do processo do carnaval. Quis mostrar as circunstâncias que levaram o Rio de Janeiro a ser uma cidade carnavalesca sem ser determinista ou evolucionista. A cidade foi capital e por isso concentrou a elite cultural brasileira, além de ser cercada por montanhas, o que possibilita o encontro de pessoas e não divide o carnaval da elite e do povo.
 
Olhar Virtual: Como surgiu o carnaval no Rio de Janeiro?

Felipe Ferreira: A ideia de se brincar no período do carnaval veio com os portugueses no século XVI. O carnaval moderno, com os desfiles, da festa organizada com forma própria, veio no século XIX transportado da burguesia de Paris. Esta delimitou o que pode e o que não pode na festa. Antes o carnaval era considerado apenas um período, um feriado, mas hoje há coisas que são feitas e que não são feitas durante a festa. Ninguém, por exemplo, vai assistir a um show de rock em tempo de folia.
 
Olhar Virtual: O que diferencia o jornalista carnavalesco de hoje com o da Primeira República?

Eduardo Coutinho: Na Primeira República, os cronistas eram pessoas totalmente       relacionadas com o carnaval, frequentavam os blocos, eram os organizadores da                  festa. Hoje, o repórter que fala sobre o carnaval está distanciado da festa, pode até gostar, mas fala de fora e não como alguém de dentro, um olhar externo que às vezes não conhece muito o carnaval.
 
Olhar Virtual: De que maneira a cobertura midiática influenciou na transformação do carnaval?

Eduardo Coutinho: O carnaval hoje se tornou um espetáculo e a mídia teve um papel fundamental para isso. O povo participa do carnaval não mais como o sujeito, mas            sim o consumindo pela televisão. Os desfiles devem ser mais rápidos para atender o tempo da TV, e com isso o próprio samba ficou mais rápido e frenético. A festa passou a ser reestruturada pelas necessidades do mercado.
 
Olhar Virtual: Como surgiram os desfiles e a figura do carnavalesco?

Maria Laura: O desfile surgiu junto com as escolas de samba no fim dos anos 20, o surgimento de ambos está relacionado. O marco do carnavalesco é no final dos anos 50, quando começou a se enfatizar a ideia estética do desfile. Antes, as fantasias não eram necessariamente dentro do enredo e nem as alegorias, os elementos não eram integrados. O carnavalesco é aquele que no fim da década de 50 vai começar a integrar os aspectos que eram separados na confecção do desfile.
 
Olhar Virtual: Como é abordado o contexto sociológico e cultural dos desfiles?

Maria Laura: Por meio do personagem do carnavalesco. Este precisa se relacionar com todos os setores que acompanham a escola de samba, então ele é sociologicamente um articulador de muitas relações sociais. Ele tem que transmitir o enredo para os compositores, tem que se relacionar com as diferentes alas, negociar com a bateria, que tem que estar satisfeita. Acompanhar a confecção do desfile foi acompanhar esta tensão das mediações do carnavalesco.

Olhar Virtual: Aconteceram mudanças na interpretação e significação dos desfiles ao longo dos anos?

Leopoldi: A modificação foi gradativa. As escolas mudaram muito, se compararmos desde seu início. As alterações nos desfiles objetivavam a visibilidade para a escola. Nos anos 70, as escolas começaram a ter mais visibilidade e assim a mídia se interessou pelos desfiles, e estes passaram a aceitar os interesses externos. Como exemplos dessas mudanças estão os carros alegóricos que passaram a ser superdimensionados. Além disso, o sambista comum não faz mais parte da escola como antes, pois o ritmo de progresso da escola não se encaixa com as coreografias do sambista, as participações individuais perderam força. Outra modificação foi a participação maior de pessoas de fora do samba, muitas vezes celebridades.
 
Olhar Virtual: Como o carnaval conseguiu constituir essa abrangência social?            

Leopoldi: Houve uma troca muito positiva, quando o samba saiu dos morros e foi para a cidade, e vice-versa, nos anos 30, o que despertou o interesse da classe média pela festa. Com o crescimento das escolas, principalmente nos anos 70, cada vez mais pessoas externas da classe média passaram a se interessar pelo carnaval e o interesse veio também das escolas, que gostavam das pessoas da zona sul nas suas localidades.