Uma religião sem orações ou rituais. Práticas religiosas próximas a sessões de terapia. Hierarquia pautada em cursos pagos. Crença na imortalidade do corpo e em civilizações extraterrestres. Assim é a Cientologia, doutrina criada nos anos 1950 pelo escritor de ficção científica L. Ron Hubbard, que vem chamando a atenção do mundo e seduzindo um número crescente de adeptos, entre eles, estrelas hollywoodianas, como Tom Cruise e John Travolta.
Com procedimentos espirituais pouco ortodoxos, a Cientologia atrai membros pelas promessas de transformação de vida. Os mestres cientólogos garantem que, através de processos de auditing, nos quais os indivíduos são conduzidos a um aparelho chamado e-meter e respondem a questionários variados, conseguem apagar traumas e lembranças ruins e promover a purificação mental dos membros.
A doutrina une (ou tenta unir) técnicas de controle mental com o discurso religioso, aproximando Ciência e fé e colocando em xeque os limites entre essas duas esferas da realidade humana. Mas o preço cobrado nessa trajetória é alto. As sessões de auditing assim como os cursos, imprescindíveis para o progresso do adepto na hierarquia da Cientologia, são pagos. Não raro, a mídia noticia casos de pessoas que denunciam os gastos abusivos de familiares com a igreja.
O viés mercadológico atrai suspeitas. Grandes devassas do Fisco sobre as propriedades da Cientologia e de seus discípulos já foram realizadas pelos governos de diversos países. Acusada de charlatanismo, ela é proibida em nações do Oriente Médio e na China. E mesmo Estados democráticos, como França e Alemanha, por exemplo, têm enfrentado problemas com a influência da seita em seus territórios.
Além disso, os críticos da Cientologia, baseados nos casos de integrantes da religião que, proibidos de procurar ajuda psiquiátrica, cometeram suicídio, salientam o caráter perigoso das técnicas aplicadas nas sessões. Apesar de terem o invólucro de terapias psíquicas, não são ministradas por pessoas qualificadas.
Mas se a Cientologia é tão nebulosa assim, por que um número cada vez maior de pessoas adere à doutrina? Estaríamos diante do nascimento de um novo tipo de espiritualidade? Os avanços científicos imprimiram mudanças bruscas na forma de o homem se relacionar com a fé? Para elucidar essas questões, o Olhar Virtual entrevistou Evandro Ouriques, professor da Escola de Comunicação (ECO), que refletiu sobre a espiritualidade em tempos pós-modernos. Entrevistamos também Emerson Giumbelli, pesquisador do Museu Nacional, que discutiu a imbricada relação entre religião e Ciência. Confira.
Pensemos sobre o momento presente. Veja as forças conservadoras que defendem a totalização pelo capital e pelo consumo e que construíram o complexo industrial militar e a partir dele a concentração de renda. Veja as forças que se entendem, digamos, de vanguarda e defendem a luta política referenciada pela própria luta política (ou seja, as práticas humanas seriam movidas apenas pelo interesse e pelo poder), entendendo-se assim também como uma “máquina de guerra”.
As religiões, e refiro-me claro do que falam na profundidade original não-fundamentalista as grandes tradições espirituais da humanidade, têm o poder que sempre tiveram e estão voltando a ter, por falarem em generosidade, em não-violência, em comunhão; em amor; em empatia; alegria; segurança; perspectiva de vida; confiança; respeito; compaixão, sem que esta última seja a ideologia perversa que gera a vitimização do outro, como na antiga “caridade”.
Na maneira atual em que as pessoas vivem, pressionadas por balcões de todos os tipos de fé e de aposta, a efetiva liberdade tornou-se então, mais do que nunca, apenas a liberdade do “salve-se quem puder”.
Isto gerou esta horrorosa babel de valores em que cada um puxa para um lado e tenta atacar e se defender do outro como pode, repetindo à meia voz que a vida é cruel, que parece ser o não tão secreto paradigma atual, diante do qual sorri quem consegue fazer impor o seu ponto de vista... Virando bobo perigoso ao fazer o outro de bobo.
Por isto a rigor não vivemos em uma sociedade, mas em um tecido social desfeito, desvinculado, claro, com áreas específicas que dão exemplo de como é possível superar a presente situação.
Enquanto o pensamento filosófico e científico enxergar como mentiras ou ingenuidade os valores universais, comuns a toda a humanidade que os usaria para referenciar suas decisões, orientando os seus interesses e poderes pela generosidade, mantendo portanto a vinculação social, a única capaz de sustentar diálogo multicultural, solidariedade, políticas públicas sociais, “espírito público”, não-violência, teremos um crescimento incontrolável de tentativas mais ou menos acertadas e controversas, mais ou menos metafísicas ou psicanalíticas de encontrarem estas verdades, das quais precisamos na mesma medida em que necessitamos da água que, por sinal, está acabando.
Mesmo no mundo das "tradições", há sempre uma sintonia com o atual e o contemporâneo. Mas é compreensível que as "novas religiosidades" coloquem com mais evidencia essa sintonia. Cada época produz suas religiões, que aparecem como novidades em relação às tradições. Por outro lado, na sua constituição, essas "novas" religiões sempre bebem de alguma tradição. Dessa perspectiva, as religiões podem ser encaradas como compromissos entre o tradicional e o contemporâneo - sejam elas "novas" ou não.
O diálogo com a Ciência é uma marca forte das novas religiosidades. Podemos adotar como marco o século XIX, com a Ciência se colocando como uma referencia necessária para um afastamento (como fez na época a Igreja Católica), para uma aproximação (como ocorreu com o espiritismo, por exemplo). O caso da Cientologia revela uma tentativa de aproximação, via Psicologia e novas tecnologias. Incentiva ainda um viés individualista, caracterizado pelo investimento sobre si e pela tentativa de uma cura psíquica. Por outro lado, a incorporação mesma dessas referências científicas, dentro de um conjunto que preserva um vocabulário próprio e que cultiva referências ufológicas, por exemplo, gera um estranhamento que não ocorreria caso não houvesse a pretensão de diálogo com a Ciência.
A Cientologia se tornou alvo de polêmicas em diversos países, com destaque para França e Alemanha. Na França, onde acompanhei a discussão, os representantes da Cientologia levantavam, em sua defesa, o argumento da "liberdade religiosa". A controvérsia levanta um debate sobre o estatuto da religião: selo de imunidade ou marca de obscurantismo? Nesses termos, temos um dilema insolúvel. De modo semelhante, a rotulação como "seita" apela para algo genérico e indefinido, algo cuja aplicação é pouco controlável. É legítimo que o Estado e órgãos públicos se preocupem com a vitimização no quadro de práticas religiosas; mas me parece que o caminho da generalização ("religião", "seita") não é o mais interessante; os pontos polêmicos devem ser tratados considerando as questões concretas em jogo.