Na semana passada, a doméstica Angélica Teodoro, de 19 anos, foi condenada pela 23ª Vara Criminal de São Paulo a quatro anos de prisão por tentar roubar, no dia 16 de novembro de 2005, um pote de manteiga em um mercado. Mãe de dois filhos, a jovem alegou que tencionava levar o alimento para as crianças, mas a motivação não comoveu a Justiça paulista.
Condenações como a de Angélica são comuns, principalmente quando o ocupante do banco de réus provém das classes de baixa renda, e contrastam com o tratamento dado pelo Judiciário aos casos que envolvem parcelas mais abastadas da população, como aconteceu com Paulo Maluf e seu filho, Flávio. Acusados de lavagem de dinheiro e evasão de divisas, os dois foram liberados, depois de 40 dias detidos, por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), órgão máximo da Justiça brasileira.
Temeridades como essas vão de encontro ao princípio constitucional da isonomia, que garante a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, e parecem reproduzir, na esfera da Justiça, as desigualdades econômicas freqüentemente encontradas na realidade social brasileira.
Para comentar as omissões e os exageros da Justiça no Brasil, o Olhar Virtual convidou o sociólogo Ivo Lesbaupin, professor da Escola de Serviço Social (ESS), e Ângelo Vargas, docente da Faculdade Nacional de Direito (FND). Confira abaixo o que eles têm a dizer sobre o assunto.
“A lei no nosso país não foi feita pelos pobres; ela foi feita por representantes dos interesses das elites, dos ricos. Infelizmente, a Justiça no Brasil ainda é profundamente elitista. A afirmação primeira de toda declaração de direitos moderna é “todos os homens nascem livres e iguais em direitos”. Um país respeitador dos direitos humanos teria de conformar sua legislação ao atendimento do princípio básico do Estado de Direito que é a igualdade de direitos.
Importa constatar aqui é que, em uma sociedade desigual, o direito é geralmente construído de acordo com os interesses da elite dominante. Somente a pressão das classes dominadas, dos setores populares e de todos aqueles que lutam por uma sociedade efetivamente democrática poderá transformar a realidade atual.
Certamente o poder mais independente da fiscalização e do controle popular é o Judiciário. Não é sem razão que, ali, se encontram os salários mais altos do funcionalismo público. A opinião pública fica indignada, mas não dispõe de meios para obrigar o Judiciário a uma outra postura. Uma verdadeira reforma do poder judiciário seria fundamental.
Eu diria que inúmeros setores da sociedade já estão reagindo, apesar do mantra midiático de que “não há alternativa”, apesar dos esforços de importantes setores do aparelho estatal para manter a sociedade passiva. A sociedade se mobiliza e quer ser ativa, mas as elites ainda fazem de tudo para impedir sua reação.”
“A Justiça é um valor altamente abstrato; ela não existe; precisa ainda ser construída. No Brasil, ainda estamos engatinhando quanto à operacionalização do Judiciário. Temos sim boas leis, o grande problema está na aplicação dessas leis. Essa aplicação ainda é extremamente estratificada.
A Justiça espelha as desigualdades sociais brasileiras. As classes mais favorecidas recebem um tratamento distinto daquele que é dispensado aos menos abastados, o que acaba comprometendo indubitavelmente o princípio da isonomia presente na Constituição Federal do Brasil. O espírito da norma é desviado.
Isso desqualifica o Judiciário perante a opinião pública. A mídia tem nos mostrado constantemente que a sociedade crê na Justiça, mas não acredita no Direito. Há a crença e a certeza no povo de que as leis precisam ser observadas, mas não são oferecidos a ele subsídios que permitam crer no Direito. Enquanto isso acontecer, viveremos em um estado de insegurança total, pois o povo sempre irá querer fazer justiça com as próprias mãos.
Eu acredito no Sistema, mas não acredito nas pessoas, ou seja, naqueles que são responsáveis pela Justiça; não acredito nos operadores do Direito. Enfrentamos graves problemas na formação ética e moral desses profissionais, embora sejam tecnicamente qualificados. Em vista disso, é imperiosa uma reestruturação no Sistema Judiciário; a sociedade clama por isso.”